As moedas de 2000 réis de 1937 (Duque de Caxias) com bordo poligonal (24 facetas) são uma emissão oficial ou uma adulteração para criar uma raridade?
Essa é mais uma daquelas emissões numismáticas ditas raras que deixam os colecionadores sempre na dúvida.
Quer saber se realmente é uma moeda rara ou uma simples adulteração de oficina? Continue lendo esse artigo de Eugenio Vergara Caffarelli e tire suas próprias conclusões.
As moedas de 2000 réis de bronze-alumínio começaram a ser cunhadas em 1936, enquanto antes dessa data era utilizada a prata para as moedas daquele valor.
No período 1936-1937 foram cunhadas ao todo 665.000 moedas. Todas elas assim como as precedentes, tinham bordo serrilhado conforme estabelecido pelo Decreto n. 565 de 31 de dezembro de 1935:
art. 3º. A orla das moedas de prata e bronze de alumínio será serrilhada e a das de nickel, lisa.
Em 1938, até setembro, foram cunhadas 335.000 moedas, sempre com bordo serrilhado.
A notável emissão de moedas deu "margem a grandes confusões e a constantes reclamações do comércio e do público em geral" como pode ser lido no Decreto-Lei n. 695 de 15 de setembro de 1938, devido "a semelhança com as de 1$000 do mesmo metal" cunhadas desde 1922. Por causa disso, o mencionado decreto n. 695 introduziu mudança de bordo:
art. 1º. Fica o Ministro da Fazenda autorizado a mandar cunhar o saldo de 8.000:000$000 (oito mil contos de réis) de moedas divisionárias de 2$000, a que se refere o decreto n. 565 de 31 de dezembro de 1935, obedecendo às características nele estabelecidas, exceto na parte relativa à orla, que deverá ser poligonal regular de 24 (vinte e quatro) lados ou faces lisas, em substituição à serrilha determinada no art. 3 di citado decreto n. 565.
É interessante notar que as novas moedas foram postas em circulação no dia seguinte ao do decreto n. 695, isto é durante o último quadrimestre de 1938 (K. Prober, em CATÁLOGO DAS MOEDAS BRASILEIRAS, 3ª edição — São Paulo 1981, pág. 171). A mudança de bordo foi certamente realizada substituindo a virola.
Por volta de 1980 tomei conhecimento da existência de moedas de 2.000 réis com bordo poligonal que constituíam uma raridade porque tinham a data de 1937. Tive também oportunidade de encontrar no comércio uma destas moedas.
Para minha decepção, porém, achei significativas diferenças de diâmetro e de peso entre esta moeda poligonal de 1937 e as de 2.000 réis com efígie Duque de Caxias da minha coleção.
Com efeito observei que os diâmetros da minha moeda de 1937 serrilhada e das moedas de 1938 (a serrilhada e a poligonal) eram em milímetros respectivamente 26,40 - 26,45 - 26,31.
As três moedas portanto tinham diâmetro conforme o estabelecido pelo decreto n. 565 de 1935, que determina para as moedas de 2.000 réis o diâmetro de 26,5 milímetros. Por outro lado a moeda de bordo poligonal de 1937 era bem menor, pois resultou ter diâmetro de apenas 25,98 milímetros.
Minha perplexidade aumentou quando passei a pesar as moedas, uma vez que o mencionado decreto n. 565 estabelece o peso de 9 gramas com tolerância para mais ou menos de 0,450 gramas, enquanto a moeda suspeita pesava apenas 8,41 gramas.
Para as três outras moedas da minha coleção havia encontrado o peso em gramas respectivamente de 9,00 - 8,81 - 9,10, bem nos limites da tolerância estabelecida.
Além disso era evidente uma acentuada diferença na orla da moeda poligonal com a data de 1937, devido á redução do espaço entre o círculo de pérolas e a orla, confrontado com todas as outras moedas.
Os resultados acima fizeram surgir dúvidas sobre a efetiva cunhagem de moedas com bordo poligonal e data de 1937 por parte da Casa da Moeda. As medições apontavam mais para uma adulteração do bordo da moeda.
Por melhor averiguar isso tudo mantive troca de correspondência com a Casa da Moeda do Brasil, que concluiu-se com a seguinte carta de 24 de novembro de 1999 daquela instituição, que transcrevo integralmente:
A propósito das considerações contidas na Carta enviada em 07 de novembro de 1999, tenho a informar que nas pesquisas realizadas na Empresa não foi possível encontrar documentação oficial datada de 1937, relativa às características da produção das moedas de taxa de 2.000 réis com a efígie do Duque de Caxias.
Nesse sentido, a despeito de podermos afirmar que a moeda submetida a perícia foi adulterada em seu bordo de forma proposital, por agentes mecânicos, com posterior execução de pseudo traços poligonais, a falta da respectiva documentação nos impede de generalizar tal afirmativa, embora haja fortes indícios que todas as moedas cunhadas naquele ano o tenham sido com bordo serrilhado.
Finalmente, cumpre ressaltar que esta Diretoria se empenhou ao máximo para oferecer subsídios técnicos que ajudassem esse renomado numismata a corrigir eventuais distorções encontradas no mercado e que, se mais não foi feito, assim aconteceu por absoluta inexistência de acervo histórico/ administrativo datado daquele período.
Atenciosamente
Raul de Oliveira Pereira
Diretor Técnico
As considerações contidas nesta carta são consequência do laudo pericial n. 051/99 que a própria Casa da Moeda mandou fazer sobre a moeda de 1937 poligonal de dois mil réis com efígie Duque de Caxias.
No laudo pericial, que concluiu afirmando a adulteração do bordo, foram realizados exames óticos e físicos através do emprego de microscópio estereoscópico, balança eletrônica e micrômetro digital, empregando como padrão de confronto duas moedas legítimas de 2$000 réis de 1937 (bordo serrilhado) e de 1938 (bordo poligonal).
Os exames foram realizados sobre a minha moeda, já por mim doada ao Museu Histórico Nacional, em cujo acervo esta conservada.
A qualidade da gravura da moeda examinada foi classificada como boa, o relevo apresentou-se satisfatório, presença de arestas e os contornos bem delineados idênticas às características físicas das moedas legítimas.
As imagens 7 e 8, obtidas através do microscópio estereoscópico mostram a similaridade entre as características físicas das duas moedas, comprovando que a moeda em questão não é fruto de uma falsificação total e sim de uma adulteração.
Analisadas as moedas em perfil e observando os traços poligonais da moeda de 1937 em confronto com a moeda legítima de 1938 (poligonal) foram constatadas várias imperfeições, como finos arranhões na forma horizontal e traços poligonais irregulares e assimétricos, comprovando o uso proposital de agentes mecânicos no desgaste do serrilhado e posterior execução dos pseudo traços poligonais.
Foto 9, obtida através do microscópio estereoscópico com ampliação de 9X, mostra as três moedas em perfil, onde podemos constatar de forma clara a adulteração na moeda questionada conforme setas indicativas.
Em decorrência do desgaste da serrilha do bordo, o espaço entre a orla e as pérolas foi reduzido e em consequência toda a parte física da moeda ficou comprometida, como por exemplo o diâmetro, o peso e a espessura da orla.
As imagens 10 e 11 mostram em detalhe o espaço entre a orla e as pérolas da moeda padrão de 1937 (bordo serrilhado) em comparação com o mesmo detalhe da moeda adulterada onde o espaço inexiste.
Características | 1938 poligonal | 1397 serrilhado | 1937 poligonal a exame |
---|---|---|---|
Diâmetro (mm) | 26,33 | 26,57 | 8,41* |
Peso(g) | 8,72 | 9,21 | 8,41* |
Espessura na orla (mm) | 2,36 | 2,40 | 2,24* |
* Valores fora dos limites toleráveis
O laudo determina assim:
De acordo com o resultado dos exames realizados, foi concluído que a moeda de 2$000 (dois mil réis) da era de 1937 com a efígie de Duque de Caxias, objeto da perícia, foi adulterada em seu bordo de forma proposital por agentes mecânicos do desgaste do serrilhado e posterior execução de pseudo traços poligonais.
O minucioso estudo científico realizado pela Casa da Moeda do Brasil sobre o exemplar conservado no Museu Histórico Nacional deve servir de orientação ao leitor. Eu quero acrescentar só algumas poucas considerações:
- Todas as moedas poligonais de 1937 que examinei pessoalmente apresentavam diminuição evidente do diâmetro, devido à necessidade de eliminar a serrilha, evidenciando a utilização de moedas originariamente serrilhadas.
A redução do diâmetro é visível a olho nu pela diminuição da largura do filete denticulado que constitui a moldura do anverso (que geralmente é chamado de orla). - Não é possível que tenha sido produzida em 1937 uma moeda de 2.000 réis com bordo poligonal, porque estaria em desacordo com o decreto n. 565 de 1935.
- A mudança do bordo de serrilhado para poligonal só foi possível em conseqüência do decreto n. 695 e começou no fim de 1938.
- A moeda apareceu na praça por volta de 1974, não sendo noticiada até então a sua existência por nenhum dos catálogos de moedas e continuando também depois desta data a não ser considerada verdadeira, até 1984. Isto será melhor esclarecido na nota bibliográfica.
- O Banco Central do Brasil, com carta de 22 de janeiro de 1999, comunicou-me que o Museu de Valores não possuía nenhum exemplar da moeda de 2.000 réis (Duque de Caxias) de 1937 com bordo poligonal e nem qualquer documento legal sobre a mesma.
Uma vez que todas as moedas cunhadas antes da criação do Banco Central do Brasil, e que hoje se encontram no Museu de Valores do Banco, faziam parte do acervo da Casa da Moeda, é claro que nem na Casa da Moeda existia a moeda em questão, fato que, mais uma vez, confirma que a Casa da Moeda não cunhou moedas poligonais em 1937.
Deixo que o leitor julgue, ele mesmo, se a moeda de Duque de Caxias de 1937 foi cunhada pela Casa da Moeda com bordo poligonal ou se todas as que se encontram no comércio tiveram o bordo adulterado.
Nota bibliográfica
Os catálogos de moedas constituem para o colecionador instrumento importante e necessário de orientação porque fornecem notícias e recursos técnicos para a adequada formação da coleção.
É natural que o leitor aceite com confiança tudo o que encontra nessas obras especializadas. Por isso acho necessário analisar criticamente e historicamente nossos catálogos comerciais, uma vez que em alguns deles é noticiada a existência da moeda adulterada como sendo legítima e raríssima.
Um exame da bibliografia existente permite fixar aproximadamente por volta de 1970 o primeiro aparecimento das moedas com bordo adulterado.
1. Catálogo das Moedas Brasileiras Santos Leitão
O Catálogo das Moedas Brasileiras Santos Leitão, que foi a mais antiga e apreciada publicação desse tipo, ao longo de 14 edições (a primeira saída em 1932 e a última em 1979), inclusive o Preçário de 1982 que concluiu a série, não faz referência alguma à existência de moedas poligonais cunhadas em 1937;
2. Catálogo de preços de Moedas Brasileiras 1643-1945
O Catálogo de preços de Moedas Brasileiras 1643-1945 de Hermann Porcher só menciona as moedas poligonais de 1938;
3. Moedas do Brasil
O livro Moedas do Brasil de Luiz Nogueira da Gama Filho, publicado em 1955, à página 156 informa:
O 2.000 réis bronze-alumínio de 1938 e 1939, descrito facetado ou poligonal pertence ao tipo UM..., não mencionando o ano 1937, e no Aditamento à página 156 aparece só a moeda poligonal de 1938;
4. Boletim do Numismata
No Boletim do Numismata publicado por Cinelli & Cia em 1948 a distinção entre serrilhado e poligonal é feita só entre as moedas de 1938;
5. História das moedas do Brasil
Ney Chrysostomo da Costa em sua História das Moedas do Brasil editada em 1973, descreve por extenso a moeda de 2.000 réis (Duque de Caxias), noticiando à página 296 que foi fabricada durante os anos de 1936, 1937 e 1938; apresentava serrilha estriada, e pouco mais abaixo Moedas datadas de 1938 apresentavam o bordo poligonal e não mais com serrilha estriada;
6. Catálogo J. Vinicius de Moedas do Brasil de 1643 a 1974
Somente com o Catálogo J. Vinicius de Moedas do Brasil de 1643 a 1974 editado em 1974 por José Vinicius Vieira do Amaral, aparece pela primeira vez a notícia da existência de uma moeda poligonal de 2.000 réis com data de 1937.
Um asterisco remete à seguinte observação: 2.000 réis de 1937 poligonal - Existe certa controvérsia quanto à autenticidade desta peça;
7. Catálogo das moedas do Brasil
O Catálogo das moedas do Brasil de Arnaldo Russo, publicado pela primeira vez em 1978, até a terceira edição, saída em 1982, não deu noticia da existência de moedas poligonais com data 1937.
O referido catálogo introduz esta moeda só a partir da quarta edição (1984) e com preço constantemente em aumento ate a 8ª edição (1994) onde a moeda é indicada sem preço e como sendo raríssima;
8. Standard Catalog of World Coins
No Standard Catalog of World Coins do editor Chester L. Krause, até a edição de 1985 não estava indicada a moeda poligonal de 1937.
Porém a 19ª edição, saída em 1991 em dois volumes de luxo por ocasião do centenário da American Numismatic Association, nas páginas 332 e 333 do primeiro volume traz a seguinte notícia:
Nos "AKNOWLEDGMENTS" este catálogo comunica que muitas centenas de pessoas contribuíram à sua realização, controlando e verificando as informações históricas e técnicas, os elencos de moedas, as cotações e as reproduções fotográficas.
(Y53) |
||||||
(Y55) |
||||||
(Inc.Ab. = Included Above / Incluído acima) |
Entre os colaboradores que são especialistas em moedas brasileiras reconheci somente o nome de Arnaldo Russo, editor do catálogo mencionado no item 7 acima.
Seja quem for o autor da informação à World Coins, é evidente que ele não conhece o decreto de 1938 e conseqüentemente os motivos que aconselharam na época a diferenciar os bordos das moedas de 1.000 e 2.000 réis.
Além disso o informante, ao sugerir que o bordo poligonal depende da forma do disco já cortado em forma poligonal de 24 lados antes da cunhagem (polygonal planchet), não sabe ou não leva em conta que o bordo é formado pela virola durante a cunhagem.
9. Catálogo Panetta
O Catálogo Panetta desde a 4ª edição saída em 1967 até a última edição de 1984, que foi a 20ª, traz unicamente a moeda poligonal de 1938, sendo que a serrilhada do mesmo ano custa de cinco a três vezes mais;
10. Preçário das Moedas do Brasil de 1985
Julio Vieira Filho, no seu Preçário das Moedas do Brasil de 1985 (1ª edição) não faz qualquer distinção entre bordo serrilhado e poligonal, enquanto na primeira edição do seu Catalogo Numismático Vieira que saiu em 1990 diferencia serrilhadas e poligonais de 1937 e de 1938, dando em correspondência os preços de 20 - 2.000 - 800 - 20 Cruzados Novos.
Na última edição deste catálogo, porém, a moeda poligonal de 1937 foi excluída porque o editor não a achou legítima.
11. Moedas do Brasil (Cupro-Alumínio - Aço Inox): ensaios e Provas
O catálogo Moedas do Brasil (Cupro-Alumínio - Aço Inox): ensaios e Provas editado por Marcelo Rocha Borges em 1993, com a colaboração técnica de José Vinício Vieira do Amaral, na página 8 traz a moeda poligonal de 1937 com o preço 30 vezes maior que a serrilhada do mesmo ano;
12. Catálogo das Moedas Brasileiras
O Catálogo das Moedas Brasileiras editado por João Eduardo Kossatz Corréa em 1992 também traz a moeda com a cotação do catálogo precedente.
Conclusão
Em conclusão, acredito quer os editores dos catálogos acima mencionados, os quais - noticiando sua existência - desta maneira certificaram até agora a legitimidade da moeda poligonal de 1937, o fizeram em perfeita boa fé.
No entanto estou convencido que estas moedas tiveram o bordo adulterado e que esta transformação não pode passar despercebida ao observador atento.
Fonte:
Artigo originalmente publicado no livro As moedas do Brasil - Desde o Reino Unido (1818-2000) publicado em 2016 em memória de Eugenio Vergara Caffarelli, páginas 323 a 330.
A foto da capa foi obtida no site minhacolecaodemoedas.blogspot.com acessado em 01/06/2020;