Museu Nacional do Rio de Janeiro: o que perdemos no incêndio?
O Museu Nacional do Rio de Janeiro, fundado em 6 de junho de 1818 por Don João VI, um dos mais antigos do Brasil, que figurou como um dos maiores museus de história natural e de antropologia das américas, foi consumido pelas chamas na noite de domingo de 02 de setembro de 2018, 88 dias depois de completar 200 anos.
Mas não se engane, caro leitor, que ardeu em chamas "coisas de museu", "velharias", "quinquilharias", "pedaços de ossos" e "madeira cheia de cupins", conotações ditas por aqueles que tentam em vão eximir de si a responsabilidade ou até justificar a perda histórica.
O que as chamas consumiram na noite de domingo, foi a nossa história, representações culturais do nosso e de vários outros povos, artefatos inestimáveis de várias eras e regiões do mundo coletados e catalogados ao longo de mais de dois séculos por meio de aquisições, doações, permutas e escavações, desde tempos remotos quando haviam brasileiros preocupados com o estabelecimento de um legado cultural, quando o Brasil ocupava posições de destaque no mundo.
O importante acervo guardado na Quinta da Boa Vista, composto de aproximadamente 20 milhões de itens, até poderia não ser importante para os políticos, para os gestores néscios de nosso país e de universidades politizadas, talvez o acervo não importava para uma classe que só visa os seus próprios interesses, ou para aqueles que valorizam muito mais os museus nos quintais dos vizinhos do que o que está em seu próprio quintal. Mas importava para nós, amantes da cultura, da arte e da história, aqueles que são fascinados não apenas pela nossa história, mas pela história da humanidade. Importava para mim, importava para o Collectprime.
Eu não tive a honra de conhecer o museu pessoalmente, e ontem chorei ao acordar na realidade de segunda-feira depois de uma noite atormentado por cenas de pesadelo da história se agonizando nas chamas.
Chorei ao dar-me conta de que a sequência de atitudes negligentes e decisões incompetentes de covardes, privou-me, privou meus filhos e todas as futuras gerações da oportunidade de passear pelos corredores e salas impregnadas de história e de poder viajar por milênios sem sair do lugar.
Eu ainda choro em meu coração ao perceber que esse não foi o primeiro reduto de nossa história e cultura que foi e está sendo destruído. Lembremo-nos do Museu da Língua Portuguesa que também foi destruído pelas chamas em dezembro de 2015, dos casarios das cidades coloniais que estão sendo destruídos propositalmente por seus proprietários pelo simples pretexto de quererem "casas novas e mais modernas" no local. Lembremo-nos das nossas mais de 500 instalações fortificadas militares que são consumidas pelo descaso, pelos museus de arte e cultura sem apoio dos governos e tantos outros que nem consigo citar.
Somos um país riquíssimo, todos sabem e não podemos "clicherizar" o termo, tornar comum, precisamos ter isso na consciência e sentir orgulho suficiente para agir e cobrar dos governantes a redução da burocracia para as parcerias entre iniciativa pública e privada na questão dos museus (e de tantas outras áreas), incentivar a visitação a museus e locais históricos, incluir nos currículos escolares a história verdadeira e retirar a história que é modificada ao bel prazer das ideologias, precisamos falar de história para nossos filhos com o mesmo entusiasmo que falamos de um filme de ficção preferido, precisamos valorizar a história da mesma forma que valorizamos o cantor ou o cinema.
O que perdemos do Museu Nacional
Não é o objetivo listar aqui todos itens do acervo do Museu Nacional, vamos focar nos principais e nos grupos significativos, que foram destruídos pelo fogo:
Estamos preparando um artigo com o máximo de informações do acervo e logo publicaremos aqui no Collectprime.
1. Luzia
Entre os itens provavelmente destruídos pelo fogo, está uma das principais atrações do museu: o fóssil humano mais antigo encontrado no Brasil, batizado de Luzia.
Descoberto em 1974 pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire, em Minas Gerais, teria 11.300 anos.
2. Sala dos dinossauros
Um dos grandes destaques da coleção de paleontologia é o esqueleto Maxakalisaurus topai, o primeiro dinossauro de grande porte a ser montado no Brasil. A ossada também foi encontrada em Minas Gerais.
Após um ataque de cupins na base de sustentação, em 2017, o Maxakalisaurus topai foi desmontado e guardado em caixas em um canto da sala de dinossauros, que foi fechada. O espaço foi reaberto em julho deste ano, após uma campanha de financiamento coletivo na internet.
De acordo com seus catálogos, o Museu Nacional possui uma das mais importantes coleções paleontológicas da América Latina, totalizando 56 mil exemplares e 18,9 mil registros.
A coleção consiste principalmente de fósseis de plantas e animais, do Brasil e de outros países, além de reconstituições e réplicas.
3. Meteorito do Bendegó
A coleção conta ainda com o meteorito Bendegó, encontrado em Monte Santo, na Bahia, em 1794. Com 5.260 kg, a peça está na instituição desde 1888.
Por se tratar de um objeto metálico pesado, que sobreviveu a uma jornada no espaço a milhares de quilômetros por hora de velocidade e que sobreviveu a um impacto com a terra, é óbvio que tenha sobrevivido às chamas do incêndio.
4. Esquife/Caixão de Sha Amun en su
Essa mulher morreu com cerca de 50 anos durante a XXII dinastia, por volta de 750 a.C. O ataúde de Sha-amun-em-su, nome da cantora que significa "os campos verdejantes de Amon".
Permaneceu no gabinete de Pedro II no palácio imperial da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, até 1889. Era um dos xodós do monarca, que, reza a lenda, trocaria até algumas palavras com o esquife.
O caixão de Sha Amun en su é uma das atrações mais populares da seção. Trata-se de um presente que Dom Pedro 2º recebeu, em 1876, em sua segunda visita ao Egito.
5. Trono do rei de Daomé (atual Benin)
Outra raridade do acervo é o trono do rei africano Adandozan (1718-1818), doado pelos embaixadores do rei ao príncipe regente Dom João 6º, em 1811.
Adandozan tornou-se rei do Daomé (atual Benin) com a morte de seu pai, Agonglo, em 1797. Tecnicamente foi o nono rei de Daomé, embora não seja contado como um dos doze reis e tenha seu nome largamente apagado da história de Abomey (capital do Daomé). Foi sucedido por Ghezo.
6. Arqueologia brasileira
Itens variados das seguintes culturas:
Cultura Maracá
No interior de grutas e abrigos-sob-rocha da região do rio Maracá foram encontrados vários cemitérios que guardam numerosas urnas funerárias em locais bem visíveis.
Causando impacto e inspirando respeito em quem adentra esses espaços destinados aos mortos, as urnas atestam o vigoroso culto aos ancestrais praticado por essa cultura.
Elas reproduzem figuras humanas masculinas e femininas em posição hierática – sentadas sobre bancos com forma de animais quadrúpedes – demonstrando tratarem-se de sepultamentos de indivíduos de status elevado.
Cultura Marajoara
A cultura Marajoara foi a que alcançou o maior nível de complexidade social na pré-história brasileira. Essa complexidade se expressa também na sua produção cerâmica, tecnicamente elaborada, caracterizada por uma grande diversidade de formas e decorada com esmero.
Cultura Konduri
Na região dos rios Trombetas e Nhamundá aparecem numerosos sítios de uma cultura que, embora mantivesse intenso contato com Santarém, desenvolveu características próprias, evidentes em sua cerâmica exuberante, com decoração incisa e ponteada e em seus raros artefatos com pintura policroma.
Cultura de Santarém
Na região do baixo rio Tapajós floresceu a chamada cultura Santarém, que se notabilizou pela produção de uma cerâmica de estilo muito peculiar, baseado no emprego das técnicas de modelagem, incisão, ponteado e aplicação.
Descrita desde o século XIX por naturalistas e viajantes que percorreram a área, suas formas revelam composições elaboradas, contendo uma profusão de apêndices de animais da floresta tropical, que constituem verdadeiras esculturas concebidas de maneira naturalista.
Região do Rio trombetas
O rio Trombetas forma uma importante fronteira cultural com a região de Santarém. De seu entorno provém raros artefatos esculpidos em pedra polida.
Alguns representam seres da natureza, como peixes, outros trazem representações de seres híbridos, como homens sentados à guisa de xamãs, por vezes sobrepostos por grandes predadores. Os jaguares e outros animais eram seres míticos para essa cultura, cujos rituais envolviam processos de transformação.
Sambaquis
Ao longo da estreita e recortada faixa costeira do litoral centro-meridional brasileiro, nos ambientes estuarinos, ricos em peixes, moluscos e crustáceos, viveram populações pescadoras e coletoras entre 8 mil anos atrás e o início da era cristã.
Seus vestígios podem ser vistos em grandes montes feitos de areia, terra e conchas - os chamados sambaquis - onde são encontrados restos alimentares, ferramentas, armas, adornos e os sepultamentos dos que ali viveram. Esses montes, com alturas variáveis, têm alta visibilidade e se destacam na paisagem litorânea.
Embora existam desde o Rio Grande do Sul até a Bahia, é no estado de Santa Catarina que os sambaquis são mais numerosos. Ali, há sambaquis que alcançam até 35 metros de altura, o que demonstra que deviam ocorrer condições extremamente favoráveis ao modo de vida dos seus construtores.
Embora sua cultura material de uso cotidiano seja bastante simples, no litoral meridional esses grupos produziram objetos cerimoniais em pedra e osso muito elaborados, com refinamento estético e sofisticação artística: os chamados zoólitos.
7. Dinossauro Angaturama Limai
Angaturama limai, dinossauro que viveu no Brasil há 110 milhões de anos, é o primeiro dinossauro carnívoro brasileiro de grande porte a ser montado no país.
Angaturama limai pertence ao grupo dos espinossauros, que são formas carnívoras caracterizadas por grande vela nas costas (formada pela extensão das vértebras dorsais) e pela posição das narinas na região média da cabeça e não na ponta do focinho, como na maioria dos dinossauros.
8. Afrescos de Pompéia
Afrescos são pinturas murais feitas no reboco fresco, daí o nome. Os afrescos do Museu Nacional chegaram ao Brasil em 1855, presente do rei das Duas Sicílias, Dom Fernando II, irmão da Imperatriz Teresa Cristina.
Não se conhecia sua origem, mas gravuras do Templo de Ísis, em Pompéia, um dos sítios arqueológicos mais visitados, sugerem que sejam oriundos de lá.
9. Coleção de arqueologia clássica
Uma das coleções mais valiosas do museu é a de arqueologia clássica, composta por 750 peças das civilizações grega, romana e etrusca. Devido ao tamanho e ao valor, foi considerada o maior do gênero na América Latina.
10. Etnologia e arqueologia pré-colombiana
O acervo de etnologia tinha artefatos da cultura indígena, como objetos raros do povo Tikuna, e afro-brasileira, além de itens de culturas do Pacífico. Havia pelo menos 1.800 artefatos de civilizações ameríndias da era pré-colombiana.
Vários artefatos das culturas Chimu, Inca, Chancay, Moche, Lambayeque, além de exemplares mumificados pré-colombianos únicos.
Segundo a historiadora Heloísa Bertol Domingues, o museu foi concebido nos moldes de instituições europeias. Na época da inauguração, quando o local ainda se chamava "Museu Real", Dom Pedro 1º escreveu que o objetivo era "propagar os conhecimentos e estudos das ciências naturais no Reino do Brasil".
11. Coleção das culturas do mediterrâneo
Composta por mais de 700 peças, a coleção Greco-Romana do Museu Nacional era fruto do fascínio da Imperatriz Teresa Cristina Maria pela arqueologia, e também da sua forte determinação.
Casada por procuração com D. Pedro II, em 1843, a Infanta de Bourbon e Sicília chegou ao Brasil nesse mesmo ano, trazendo em sua bagagem, por iniciativa própria, algumas peças recuperadas nas escavações promovidas em Herculano e Pompéia, pelas quais nutria interesse desde muito jovem.
Algumas dessas peças faziam parte da coleção da Rainha Carolina Murat, irmã de Napoleão Bonaparte e esposa do Rei de Nápoles. Por sua vez, seu irmão, o Rei Ferdinando II, fez prosseguir as escavações iniciadas desde o século XVIII em ambas as cidades, e Teresa Cristina Maria conduziu escavações em Veio, em um sítio etrusco 15 km ao norte de Roma.
As peças recuperadas alimentavam o Museu Bourbônico, em Nápoles. Decidida a aumentar a presença italiana no Brasil através de intercâmbios formais e cogitando a criação, aqui, de um museu de arqueologia romana, a Imperatriz solicitou novas peças a Ferdinando II, ao mesmo tempo em que enviava peças de arte indígena para a Itália.
A maior parte desse acervo greco-romano chegou ao Brasil entre 1853 e 1859, mas continuou a ser enriquecido até a Imperatriz deixar o país em 1889, quando passou à guarda do Museu Nacional, hoje, destruído pelo fogo.
12. Acervo do Egito antigo
Com mais de 700 peças, a coleção de arqueologia egípcia do Museu Nacional é considerada a maior da América Latina e a mais antiga do continente - com múmias, sarcófagos, estelas funerárias, estatuetas outros artefatos.
O que o futuro reserva?
É evidente que algumas peças em pedra, metais e quem sabe até ossos poderão ser recuperadas, mas isso será uma ínfima parte do grande acervo.
E, também, não podemos nos contentar com essa possibilidade, precisamos apoiar mais as instituições de arte, cultura, colecionismo e história de nosso país, nos unir ainda mais em torno do estabelecimento de uma identidade cultural no nosso país.
Mas, quando digo identidade cultural, não me refiro só a valorização das etnias, da música, da culinária e de tantos outras vertentes e identificadores culturais, me refiro também à preservação do passado e fomento da curiosidade pelo passado.
Temos tantos outros patrimônios que precisam de nós, que precisam do nosso apoio, da nossa valorização e podemos ter atitudes simples para valorizar: ao invés de ir em museus de outros países, visite primeiro os museus de sua cidade, de seu estado, os museus do Brasil, estude mais sobre sua origem, sua cidade.
Incentive crianças, adultos e quem encontrar a viajar pelo passado, assim, conhecendo o passado, todos entenderão melhor o presente e poderão tomar decisões melhores para o futuro.