Em maio de 2017, dois numismatas de São Paulo foram chamados ao Museu de Valores do BC ajudar a equipe do Banco a identificar raridades da numismática brasileira: as moedas de 960 réis.

De acordo com elementos de raridade, peças podem valer milhares de reais. Em 7 mil itens analisados, BC já identificou oito moedas únicas.

O Museu tem diversas variações dessas peças. Algumas, as únicas conhecidas até hoje. E, acredita-se, há ainda no acervo itens que sequer foram identificados e que não devem existir em outro lugar.

"Há várias moedas que especialistas sabem que existiram, mas que ninguém conseguiu encontrar. Há notícias de que temos moedas de 960 réis do primeiro ano, mas elas ainda não foram encontradas no acervo. Há peças tão raras e únicas que nem podem ser valoradas", explica Karla Valente, chefe do Museu de Valores do BC.

A fascinação pelos 960 réis – e a dificuldade em identificá-los corretamente – vem da forma como essas moedas surgiram. Quando a família real portuguesa mudou-se para o Brasil, em 1808, fugindo das invasões francesas comandadas por Napoleão Bonaparte, a Coroa ordenou a fabricação de dinheiro para que o estilo de vida real da família de Dom João pudesse ser mantido.

Moeda de 960 réis de 1809 (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda de 960 réis de 1809 (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)

A solução mais rápida foi o aproveitamento da prata das moedas de 8 reales espanholas, cunhadas nas colônias da Espanha e que circulavam livremente por diversos países do mundo, incluindo o Brasil.

O príncipe regente, Dom João, publicou alvará que autorizava a contramarca (uma espécie de carimbo) sobre essas moedas, transformando-as em réis e, assim, oficializando a utilização do dinheiro no território brasileiro. A contramarca, contudo, era menor que o diâmetro da moeda de 8 reales, deixando a adaptação evidente.

As moedas de 8 reales, que originalmente tinham valor de câmbio entre 750 e 800 réis, passaram a circular com um carimbo de 960 réis. Após um ano, em 1809, entretanto, D. João autorizou o recunho total das peças, com a carimbagem passando a ocupar totalmente o disco da moeda-base.

Elas foram chamadas de "patacões" (veja imagem ao lado) e passaram a circular simultaneamente com as moedas de 960 réis carimbadas ou contramarcadas, válidas antes da determinação de recunho total.

Ou seja, existia uma infinidade de moedas diferentes, de mesmo valor, circulando em território brasileiro. Como não havia uma Casa da Moeda central e única, e os cunhos eram feitos manualmente, a recunhagem de 960 réis apresentava diversas variantes, dependendo da localidade e do responsável pela fabricação do molde.

Ao receber uma ordem para produzir mais moedas, não havia uma padronização, apenas algumas instruções, que eram seguidas de acordo com a interpretação do cunhador. Eram essas diferenças que determinavam o dono do cunho, o período no qual a moeda foi feita, os locais onde circulou. Além disso, as próprias moedas de 8 reales tinham variantes, uma vez que vinham de distintas colônias espanholas.

Dependendo de elementos de raridade, as peças únicas podem ter valores bem altos no mercado numismático, chegando a valer centenas de reais, ou centenas de milhares de reais. "Já houve caso de o cunho estar invertido no momento da produção da moeda. Esses elementos determinam o valor das peças, que podem pular de R$280 para R$120 mil, por exemplo. Muitas vezes as pessoas não sabem o verdadeiro valor quando colocam à venda na internet", afirma Maria Isabel Marques, do BC.

Apesar de o alvará emitido pela Coroa permitir recunho apenas em moedas de 8 reales, foram encontradas moedas recunhadas sobre rúpia indiana, sobre sol argentino, ducato holandês, entre outras. Muitas dessas peças fazem parte do acervo do Museu de Valores do BC e são únicas, seja por terem sido encontradas apenas uma vez ou porque não havia conhecimento de sua existência antes de serem encontradas.

8 reales

Apesar do declínio da dominação hispânica no início do século XIX, os 8 reales ainda eram a moeda universal da época, sendo aceita em praticamente todos os países, inclusive no Brasil. Eram emitidos em diversas Casas da Moeda, tanto na América – no México, em Potosí (Bolívia) e Lima (Peru), principalmente, além de outras cidades menores, como Santiago (Chile), Popayán (Colômbia) e na Guatemala – quanto na Espanha (Madrid e Sevilha).

Moeda de 8 reales de Ferdinandus VII (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda de 8 reales de Ferdinandus VII (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)

"Era uma moeda padrão porque os espanhóis conseguiram implementar vários elementos de segurança, como a borda serrilhada que evitava a raspagem da moeda", explica Jorge Sasaki, coordenador no Depef. "Esses elementos eram aceitos no mundo todo, continham tecnologia antilapidação, de cerceio (ato de aparar as extremidades de uma moeda para aproveitar as aparas, o que provocava a diminuição do valor intrínseco da moeda). Ela era usada como o dólar é usado hoje".

Além disso, a composição da prata dessa moeda era melhor do que a usada hoje, com alto teor de pureza. Então, após receber o recunho, era como receber um certificado de autenticidade.

Caça ao tesouro

A partir de uma recomendação da Auditoria do próprio BC, desde o início de 2017, o Museu de Valores do Banco Central passou a atualizar os dados de seu acervo com a valoração de cada peça numismática. Até então, essas peças eram avaliadas com o valor contábil, o que não levava em conta seus valores no mercado numismático, nem aspectos de apreciação ou depreciação.

Dentre as moedas de recunho de 960 réis consideradas raras, foram encontradas no acervo do Museu de Valores, até hoje, dez exemplares diferentes, oito deles peças únicas. É possível que haja mais unidades no acervo, que ainda não foram detectadas, pois apenas cerca de 7 mil peças, das 135 mil existentes, foram avaliadas até agora. A pesquisa de valoração das peças continuará ao longo deste e do próximo ano.

Um exemplo dessas raridades é a moeda de 960 réis recunhada sobre moedas de 2 rúpias indianas (abaixo). Não há registro dessa variante pois, de acordo com o alvará emitido pelo príncipe regente à época, o recunho só era permitido em moedas de 8 reales.

Moeda de 960 réis de 1816 sobre 2 rúpias indianas (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda de 960 réis de 1816 sobre 2 rúpias indianas (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)

"Outras unidades não são únicas, mas raras, como a que possui o carimbo de Cuyabá (na época a grafia era com Y), pois houve pouca cunhagem. Isso ocorreu por conta de disputas regionais entre Cuiabá e Mato Grosso", conta Karla Valente. A moeda do acervo do museu possui carimbo de 1817 e ainda não foi avaliada.

Moeda de 8 reales de 1807 com Carimbo Cuiabá (Cuyaba) (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda de 8 reales de 1807 com Carimbo Cuiabá (Cuyaba) (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)

Há casos também de províncias que quiseram, por iniciativa própria, fabricar o próprio cunho até serem descobertas pela coroa. A recunhagem ocorria sobre moedas-base diversas, como a moeda da Guatemala à época, também de prata, com o mesmo diâmetro dos 8 reales (confira abaixo).

Moeda de 8 reales de 1816 Colunário da Guatemala (Ferdin VII) (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda de 8 reales de 1816 Colunário da Guatemala (Ferdin VII) (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)

No anverso, notam-se as letras do lado direito e, no reverso, na parte superior, é possível ver uma parte de uma coroa e letras da legenda da moeda anterior.

Moeda de 960 réis de 1819 da Bahia sobre Colunário da Guatemala (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda de 960 réis de 1819 da Bahia sobre Colunário da Guatemala (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)

No caso dos 960 réis recunhados sobre o un duro de Gerona (Espanha), nota-se, no centro-direito da moeda, tanto no anverso, quanto no reverso, resquícios da moeda original. Essa moeda da colônia espanhola é considerada rara pelos numismatas.

Moeda de 960 réis sobre Un Duro da Espanha (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda de 960 réis sobre Un Duro da Espanha (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)

Na moeda abaixo, o sol argentino fica evidente, com os raios de sol ladeando a contramarca de 960 réis. Como a moeda argentina é de 1813, certamente o carimbo foi colocado depois que os patacões passaram a ser cunhados.

Moeda de 4 reales sol argentino de 1813 (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda de 4 reales sol argentino de 1813 (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Carimbo de Minas de 960 réis sobre Moeda Sol Argentino (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Carimbo de Minas de 960 réis sobre Moeda Sol Argentino (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)

Resquícios da moeda original são notados também no centro deste item, tanto no anverso quanto no reverso do único patacão conhecido cunhado sobre 1 ducato (Holanda), também abaixo.

Moeda Ducato da Holanda de 1664 (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda Ducato da Holanda de 1664 (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda de 960 réis sobre Ducato da Holanda (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda de 960 réis sobre Ducato da Holanda (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)

Outra raridade é o único patacão conhecido feito sobre um Patagón de Brabante (abaixo), uma província espanhola que veio a ser a Bélgica. O Patagón de Brabante foi recunhado em cima de 8 reales e, aqui no Brasil, foi novamente recunhado como 960 réis. Na parte superior do anverso, acima da coroa, aparecem algumas letras da legenda da moeda original.

Moeda de 960 réis sobre Patagon de Brabante da Bélgica (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda de 960 réis sobre Patagon de Brabante da Bélgica (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)

Algumas moedas de 8 reales que haviam sido carimbadas com a contramarca de 960 réis, foram recolhidas e recunhadas novamente com o cunho de 960 réis. Isso era um erro, pois já continham o valor correto. É o caso do Carimbo de Minas, cujo exemplar é o único conhecido até agora.

Moeda de 960 réis de 1824 sobre moeda com Carimbo de Minas (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda de 960 réis de 1824 sobre moeda com Carimbo de Minas (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)

O único patacão conhecido sobre ecu de Luís XVI (moeda francesa da época) também foi encontrado no acervo do Museu de Valores. Na parte superior do anverso, é possível ver a data da moeda original.

Moeda Ecu Luis XVI de 1771 (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda Ecu Luis XVI de 1771 (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda de 960 réis de 1816 sobre Ecu Luis XVI (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)
Moeda de 960 réis de 1816 sobre Ecu Luis XVI (Acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil)

Fonte
Matéria originalmente publicada no dia 26/07/2017 às 10:57 no portal de notícias do Banco Central do Brasil