Julius Meili e a Numismática brasileira

A Numismática — tão desdenhada por certa escolha de modernos historiadores científicos, esquecidos do auxílio que tem prestado sobretudo na solução de intrincados problemas cronológicos — certo não cabe lograr conspícuo na vasta hierarquia dos conhecimentos humanos: é uma ciência de gabinete como que feita para os ócios eruditos de amadores opulentos.

Mas, quando estes, deixando de ser meros colecionadores, passam a considerar as moedas e medalhas sob aspectos históricos, artísticos e econômicos, indagando das suas relações com o progresso de um povo, reúnem, por vezes, elementos de valia para o estudo da sua evolução cultural e chegam a resultados que a própria sociologia não pode desprezar.

Está nestas condições raras e preciosas o Sr. Julius Meili.

Julius Meili (Hinwil, 13 de março de 1839 — Genebra, 26 de setembro de 1907)

Desde 1875, quando ainda negociante na Bahia, este benemérito cidadão suíço veio reunindo as espécies de seu monetário brasileiro, hoje o mais numeroso e completo que existe aquém e além mar, e, retirando-se da vida comercial, em 1889, deu início à publicação de várias monografias, descrevendo e representando as preciosidades de sua coleção.

Refundindo e ampliando, mais tarde, estes primeiros estudos, empreendeu elaborar a história de "O Meio Circulante no Brazil", obra de proporções monumentais, que brilhantemente vai levando a termo.

O volume inicial, compreendendo "As moedas do Brasil Colonial (1645 - 1822)" apareceu em 1897.

É um belo álbum primorosamente impresso no Instituto Polygraphico de Zurich, e no seu breve prefácio se acha plenamente demonstrada a utilidade do cometimento do Sr. Meili, em face da pobreza quase absoluta da nossa literatura numismática. De fato, não realizada a promessa feita, em 1880, por Teixeira de Aragão, de consagrar um quarto volume de sua excelente "Descripção Geral e Histórica das Moedas de Portugal", a numária brasileira, apenas possuímos os lacunosos "apontamentos e catálogo" que, sob o título de "Moeda do Brazil", João Xavier da Motta deu a luz nove anos depois. Quem procurava esclarecimentos mais minuciosos tinha que respingar trabalhosamente informações esparsas por grande número de obras e catálogos, na aparência alheios ao assunto, cuja bibliografia metódica ocupa as primeiras páginas do volume citado.

Escudo de ouro de D. João V

Vem após uma relação das primeiras Leis, Alvarás, Cartas Régias, Decretos, Provisões, Portarias e Avisos, de 1694 a 1822, referentes ao meio circulante no Brasil Colônia na qual está condensada toda a legislação sobre a matéria.

A parte descritiva, profusamente entremeada de notas históricas, serve de introdução um golpe de vista retrospectivo sobre o numerário português tendo curso no Brasil de 1500 a 1688. A leitura deste capítulo é sumamente instrutiva: nele se nos mostra como, em um período de quase dois séculos as sucessivas e frequentes reduções de padrão foram enfraquecendo a moeda e elevando o valor do metal.

Passando a tratar do numário propriamente brasileiro, o autor nos ministra dados novos e curiosos sobre o primeiro metálico fabricado no Brasil: as famosas moedas obsidionais cunhadas no Recife, pelos holandeses, em 1645-46 e 1654.

Moeda obsidional de 1646

Em fins do mesmo século XVII, a exportação do dinheiro de contado para a metrópole, por motivos perfeitamente explicados no suculento capítulo — Razão dos estabelecimentos e casas de Moeda no Brasil, atingiu proporções tais que a colônia ficou quase inteiramente privada de numerário.

Deliberou então El-Rey D. Pedro II (de Portugal) autorizar por Carta Régia de 8 de março de 1694, a cunhagem de "Moedas-Provinciais", que deviam circular somente no Brasil, não podendo ser exportadas. A fim de conservar na colônia o novo dinheiro, foi aqui proibido, por Alvará de 10 de dezembro de 1695, o curso das moedas do reino e aos ourives que trabalhassem, ou fundissem metais preciosos amoedados.

Ensaio monetário da primeira moeda brasileira

Os valores estabelecidos para o novo numerário foram de nove espécies: três de ouro (4$000, 2$000 e 1$000) e seis de prata (640, 320, 170, 80, 40 e 20 réis).

As primeiras distinguiam-se das do reino pela inscrição — Et Brasilae Dominus; —para as de prata foi adotada a divisa — Subq. Sign. Nata Stab. — cuja significação tem sido diversamente interpretada.

A Casa da Moeda, primeiramente estabelecida na Bahia, ali funcionou por espaço de quatro anos; transferidos então para o Rio de Janeiro o seu pessoal e material, trabalhou nesta cidade de 17 de março de 1699 a 13 de outubro de 1700 e mudada finalmente para Pernambuco, laborou no Recife até 5 de abril de 1702.

No decurso do século XVIII a produção fabulosa das jazidas auríferas de Minas Gerais, S. Paulo, Goyaz e Cuyabá levou à metrópole um caudal de riqueza inestimável.

A fim de amoedar o ouro proveniente do imposto de 20% (quinto), e que sob esta forma era de preferência exportado para o reino, instituíram-se casas de moeda em diferentes pontos das regiões mineiras, assim como no Rio de Janeiro e Bahia. As espécies e variedades de moedas nelas fabricadas, até a independência, são tão numerosas que se torna impossível mencioná-las.

Peça de quatro mil réis de D. Pedro II cunhada em Pernambuco

Todas, porém, mereceram circunstanciada descrição no trabalho do Sr. Meili e acham-se representadas, nos seus principais tipos, nas belíssimas estampas que o acompanham e completam.

É sobretudo digna de nota a magnífica série de escudos de ouro, cunhados na Bahia, no Rio de Janeiro e em Vila Rica, durante o reinado de D. João V, com a efígie do monarca; as cinco espécies desta série, pelo seu alto valor intrínseco e a sua perfeição artística, são das mais procuradas pelos colecionadores. O mesmo acontece com os enormes dobrões de cinco moedas, fabricados em Vila Rica de 1724-27, com perto de 54 gramas de peso e o valor nominal de 20$000.

Dentre o numerário cunhado no reinado de D. José I (1750-77), salientaremos somente as denominadas moedas mineiras, especialmente adaptadas ao comércio do ouro, a cujo preço em vinténs (32 uma oitava) correspondiam as suas significações de valor: 600, 300, 150 e 75 réis.

Moeda mineira

A história das moedas do reinado de D. Maria I (1777-1805), abrange dois capítulos relativos aos dois períodos: o em que governou com o consorte D. Pedro III (1777-86) e o segundo (1786-1805) em que governou só.

Moeda de ouro D. Maria I e D. Pedro III

Igual divisão sofreu naturalmente o governo de D. João VI, primeiro como Príncipe Regente (1805-18) e, por fim, como rei (1818-22).

Do primeiro destes reinados, o Sr. Meili descreve 272 moedas de ouro, prata e cobre, cunhadas no ou para o Brasil.

Moeda de cobre de D. João VI

Não escapou às suas pesquisas o avultado número de carimbos postos em moedas nacionais e estrangeiras, durante o reinado de D. João VI, a fim de lhes modificar o valor.

Estas contramarcas são frequentes, principalmente nos pesos espanhóis, que corriam pelo valor de 960 réis, e receberam o carimbo constante das armas do reino, entre dois ramos de louro, tendo por baixo 960 e no reverso a esfera armilar.

Moeda de D. João VI

Das barras de ouro de lei, que tiveram larga circulação nos distritos auríferos, descreve o Sr. Meili diversos exemplares provenientes das casas de fundição de Vila Rica, Sabará e Serro Frio. Estes fragmentos do precioso metal acham-se completamente revestidos de marcas constantes das armas do reino, tendo por baixo o nome da localidade da oficina fundidora, do número da barra, do ano de fundição, da palavra Toque e o respectivo algarismo, e dos algarismos do peso e sinais particulares.

Barras de ouro. Casa de Fundição de Sabará

Conquanto reservasse para o terceiro volume o estudo da moeda fiduciária, o Sr. Meili consagrou neste um pequeno capítulo à fundação do primeiro Banco do Brasil, estabelecido pelo Alvará de 12 de outubro de 1808, enumerando brevemente as notas por ele emitidas.

Valiosa contribuição par ao estudo da nossa história econômica constitui o capítulo intitulado "Produção total das Casas de Moeda do Brasil, de 1703 e 1822".

Segundo os dados pacientemente reunidos pelo Sr. Meili, o valor do numerário produzido durante aquele período elevou-se às seguintes somas:

Metal Montante
Ouro 245.640:998$000
Prata 40.460:866$300
Cobre 5.000:000$000

Em 1905, saiu à luz o segundo volume de "O Meio Circulante no Brasil", compreendendo "As Moedas do Brazil Independente (1822-1900)".

Moeda carimbada do Ceará

Como o primeiro, forma um álbum copiosamente ilustrado com gravuras de 245 moedas do Império, 26 da República e 223 fichas emitidas por particulares ou sociedades.

É talvez ainda mais completa do que aquele, não faltando no texto e nas estampas uma só das espécies cunhadas desde a independência, a começar pela famosa moeda de ouro de 1822, com a efígie de D. Pedro I e que tanto desagradou ao monarca, por não trazer o qualificativo de Imperador Constitucional, até as de níquel da emissão de 1901, logo tão abundantemente falsificadas.

Primeira moeda de D. Pedro I, sem a palavra Const.

A parte descritiva e igualmente fertilíssima em notícias históricas, econômicas e financeiras, e dados sobre as alterações do padrão e as oscilações do câmbio.

De permeio a estes dois volumes apareceu, em 1903, o terceiro, relativo à "Moeda Fiduciária no Brazil" 1771 até 1900, de formato um tanto maior.

Compreende o texto duas grandes seções — Emissões legais e Emissões ilegais — subdivididas em vinte e seis capítulos respectivamente ocupados com a legislação e mais notícias relativas a toda a casta de papel moeda que tem circulado no nosso país desde 1771, quando, em virtude do regimento de 2 de agosto, começaram a correr em Minas Gerais os famosos bilhetes de extração dos diamantes, até os vales de troco de ouro atualmente emitidos pelas alfândegas.

Combinado a leitura destes capítulos com o exame das estampas, que em número de 192 representam 1637 espécies diferentes, obtém-se um golpe de vista assas instrutivo, não só sobre a evolução dos nossos processos financeiros, como sobre os progressos das artes gráficas e do aperfeiçoamento estético.

Primeira moeda de D. Pedro II

A partir das notas do primitivo Banco do Brasil, desmesuradas, grosseiras, feias, fácil e frequentemente falsificadas, chaga-se através de um sem número de emissões intermediárias às cédulas do Thesouro Nacional hoje circuladas, perfeitas, elegantes, cômodas, mas, ainda igualmente, objeto de fraude.

Completam excelentemente esta primeira seção de "A Moeda Fiduciária no Brasil", prestabilíssimos quadros dos Bancos de emissões que tem existido de 1808 a 1896, outros confrontativos das emissões do Governo e dos Bancos com o câmbio, de 1808 a 1900, atentas as modificações do padrão monetário ocorridos em 1833 e 1848, e uma lista dos valores de papel-moeda legalmente em circulação em fins de dezembro de 1900, na importância de 699.631:719$000, ou uma média de 44$000 para cada habitante do país.

A segunda seção — Emissões ilegais — compreende os bilhetes de Estados, municipalidades, empresas de ônibus, barcas e bondes, e de companhias e particulares, abrangendo o prodigioso total de 1263 espécies.

Estas emissões abusivas, ilegais ou criminosas de títulos de crédito (quer dizer de dívida) ao portador, denominados apólices, cautelas, cupons, estampilhas, ficas, fichas, livranças, obrigações, recibos, selos, vales e alcunhados no Ceará de Borós, em Pernambuco de Calcareos, Sampaios e Haja Paus, no Maranhão de Debentures, em Minas-Gerais de Barrosques, não são tão modernas como em geral se presume. O sr. Meili nos mostra que já circulavam, de 1837 a 1859, em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas-Gerais, Pernambuco, Maranhão e Pará.

Em apêndice menciona ainda o sábio e operoso "numismatista" espécimen de anúncios, reclames, bilhetes de loterias, e de rifa, e fichas de jogo.

Como complemento indispensável a obras deste generoso salientam-se as centenas de magníficas estampas, representando milhares de moedas e cédulas, que acompanham os três volumes publicados. Executadas com admirável perfeição pelo processo de photo-callographico, o mais fiel que desejar se pode, estas estampas constituem, já por si, um verdadeiro curso de história da nossa cultura.

Um quarto volume, consagrado as medalhas e condecorações, e já no prelo, completará em breve esta obra grandiosa e sem rival na literatura das demais nações latino-americanas.


A comissão de Redação organizando no ano de 1908 esta 2ª parte do Tomo LXIX, relativo a 1906, resolveu incluir o artigo do Ilustre consócio Dr. Alfredo de Carvalho, a respeito da obra de Julius Meili, também nosso consócio.

A comissão não deixa de registrar, porém, e com intensa mágoa, o falecimento do Sr. Meili, ocorrido o ano passado, a quem o Brasil deve inolvidáveis serviços, pois era um dos seus maiores amigos, dando disso provas eloquentes até os últimos momentos de existência.

Nota da Comissão de Redação.


Fonte:
O presente artigo foi escrito pelo Dr. Alfredo de Carvalho em 1906 e publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, edição de 1908, Tomo LXIX - Parte II.

Foi republicado no Boletim nº 65 da Sociedade Numismática Brasileira no inverno de 2010.

As imagens foram tratadas e a ortografia e gramática adequadas para a linguagem de hoje por Plínio Pierry em 13/10/2020.

A publicação de artigos dos boletins da SNB no Blog do Collectprime foi autorizada pela SNB, na pessoa do então Presidente Gilberto Tenor no dia 11/08/2018.