A chegada da corte real de Portugal no Brasil, em 1808, trouxe consigo necessidades para rápida implementação no mundo novo.

Em razão das inovações na ordem econômica da colônia, rapidamente surgiu a necessidade da cunhagem de novas moedas que traduzissem a realidade daquele momento.

Havia escassez de diversos produtos, especialmente de dinheiro circulante. Dada a existência de uma sólida parceria econômica com a Inglaterra desde há muito tempo, cogitou-se a possibilidade do início da produção de moedas na mais pujante colônia portuguesa.

A carta e a equipe do Projeto

Para viabilizar a produção de novas moedas, Manuel Antônio de Paiva, português ligado à coroa real, enviou uma carta a Matthew Boulton em 5 de julho de 1808.

Boulton era sócio da empresa inglesa SOHO Manufactory, de propriedade dos sócios Boulton & Watt, especializada na fabricação de máquinas para cunhar moedas a vapor.

Gravura de Matthew Boulton feita por William Sharp
Gravura de Matthew Boulton feita por William Sharp

A carta sugeria interesse do Príncipe Regente na produção de novas moedas na colônia portuguesa e questionava se a empresa teria condições de entregar uma máquina de cunhar no Rio de Janeiro, acompanhada de técnicos ingleses capacitados para fazer a máquina funcionar e para ensinar outros trabalhadores a operá-la.

Para a concretização da negociação, ficou ainda responsável o Sr. John Charles Lucena.

Vista da Fábrica Soho em 1880 e dos escritórios da Casa da Moeda da Inglaterra em Hadsworth, próximo a Birmingham
Vista da Fábrica Soho em 1880 e dos escritórios da Casa da Moeda da Inglaterra em Hadsworth, próximo a Birmingham

Assim, a nova casa da moeda deveria estar completa em todos os aspectos, ou seja, para a cunhagem de moedas em ouro, prata e cobre.

Ainda, na carta, perguntava da possibilidade do fornecimento de um meio para dar uma segunda impressão em moedas já existentes, no caso, os dólares espanhóis.

Concluindo, demonstrava interesse na aquisição de duas ou três máquinas de cunhar a serem instaladas no Brasil, em locais diferentes.

Após tratativas iniciais, ficou acertado que uma máquina de cunhar a vapor seria preparada e enviada. Tratava-se de uma máquina que empregava a tecnologia mais moderna do mundo à época.

Para tanto, após o recebimento da carta, os fabricantes Boulton e Watt convidaram Manoel Antônio de Paiva para ir a Birmingham discutir detalhes sobre a máquina e o método de cunhagem e recunhagem.

Juntamente com De Paiva, foi o Sr. Chevalier Domingos de Souza Coutinho, embaixador de Portugal na Inglaterra, e um jovem engenheiro chamado Gaspar Marques, que seria enviado ao Brasil para acompanhar a instalação e supervisionar o projeto da instalação da nova Casa da Moeda.

Os equipamentos

Em outubro de 1809, Matthew Boulton enviou a estimativa de custos para uma máquina de cunhar moedas, capaz de recunhar até duzentos mil dólares espanhóis por semana.

O equipamento completo consistia em seis prensas de moedas, quatro cortadeiras, três fresas rotativas (para alterar ou marcar as bordas das moedas), duas máquinas de polir discos (antes de cunhá-los), dois balancins, dois fornos e uma prensa multiplicadora de cunhos, todos movidos pela mais recente geração de motores de 10cv, também produzidos por Boulton e Watt.

10 prensas da SOHO em operação no salão de cunhagem da Haton's Mint em 1862 (data e local provável)
10 prensas da SOHO em operação no salão de cunhagem da Haton's Mint em 1862 (data e local provável)

Além dos equipamentos principais, ficou acertado que seriam enviadas para reposição peças de maior desgaste e um segundo boiler, pois no ambiente tecnológico primitivo que encontrariam no Brasil seria difícil encontrar ou fabricar esses componentes. Além disso, seriam remetidos planos detalhados, bem como um dos melhores homens da empresa.

No final do verão de 1809, os cunhos para a maioria das moedas de ouro e prata brasileira estavam em fabricação. As negociações prosseguiram durante o restante de 1809 e entraram no ano seguinte.

Os atrasos e obstáculos

Neste ponto, a história que se seguiu foi totalmente diferente do que qualquer um tenha antecipado ou imaginado: os portugueses estavam postergando a assinatura do contrato para a aquisição de sua máquina de cunhar moedas.

Marques foi a Birmingham, sede da Boulton & Watt, e os meses finais de 1809 e os primeiros de 1810 foram destinados a repassar conhecimento sobre a forma de produção de dinheiro na Inglaterra e como operacionalizar procedimentos.

No ano de 1811, Marques retorna a Birmingham para uma revisão. Após entraves burocráticos e legais, a permissão oficial para o embarque da máquina foi finalmente garantida em 09 de junho de 1810, antes do término de sua construção.

Superada esta fase, Thomas White, profissional altamente qualificado na construção de máquinas a vapor, seria enviado ao Brasil para viabilizar a instalação da nova máquina de cunhar, fato que mais tarde lhe traria amargo arrependimento.

Novos obstáculos foram criados pelos portugueses, agora com relação ao pagamento da seleção de trabalhadores que seriam enviados para executar a instalação.

Com isso, os ingleses cogitaram revogar unilateralmente o contrato no tocante a disponibilização de ingleses para a instalação do maquinário, pela má vontade dos portugueses em pagar o que os ingleses desejavam.

Essa discussão se estendeu por um ano, e o único inglês que seria enviado decidiu aumentar as exigências. Em razão do alto conhecimento técnico de White, Portugal cede às exigências dos ingleses.

Assim, no final de agosto de 1811, a máquina estava finalizada e White pronto para embarcar em sua viagem ao Brasil.

A construção da máquina iniciou-se muito antes da assinatura de qualquer contrato, e, em troca do maquinário e dos serviços prestados, os ingleses receberiam £8.550.

Metade seria paga em letras de câmbio, dentro de dois meses após a chegada do motor às docas de Londres, e o restante em quatro meses, após remessa da segunda parte.

O motor, pesando 66 toneladas, foi produzido na fundição e enviado para as docas de Londres, para posterior remessa ao Rio de Janeiro.

Na sequencia, Boulton recebe uma carta de Souza Coutinho dizendo que antes de qualquer coisa, Gaspar Marques deveria levar as plantas do maquinário do Brasil a fim de projetar um prédio apropriado de acordo com o planejamento.

Diante de mais este entrave oferecido pelos portugueses, já desconfiado, Boulton exigiu o pagamento imediato do maquinário, pois sentia que tinha cumprido com todas as exigências do contrato.

Além disso, se os portugueses impusessem novas dificuldades, disse que lhes cobraria o aluguel pela armazenagem.

A propósito, a esta altura, Boulton já pensava em uma ação judicial para executar o contrato, pois já havia cumprido com sua parte.

No início de 1811 iniciou-se a operacionalização do envio da primeira parte da carga de Birmingham para as docas de Londres.

Este primeiro lote era composto pelo motor e suas partes, pesando 22 toneladas e distribuídas em 86 caixas marcadas com as siglas “ZK”.

A segunda parte foi acondicionada em 138 caixas, pesando quase 48 toneladas, com as iniciais BM (Brazil Mint).

Quando o primeiro lote foi descarregado em Londres, o capitão atrapalhou-se e deixou de contar duas caixas, o que gerou confusão e prorrogou mais um pouco o pagamento aos ingleses.

No final de setembro de 1811 os portugueses finalmente pagaram a primeira parte a Boulton. Gaspar Marques partiu para o Brasil e o maquinário em breve estaria em rota.

Quando Marques chegou ao Brasil, logo se pôs em conflito com as autoridades locais, que queriam a instalação da máquina em um velho prédio, impróprio para a nova casa da moeda.

Detalhe para as dificuldades: metade do velho prédio deveria ser destruído para que a máquina coubesse e 10cm de água encobriam o chão!

Diante disso, foi oferecido um segundo local, agora uma igreja velha, mas sem suprimento de água! Finalmente, após alguma discussão, a corte portuguesa decidiu construir um novo prédio.

O naufrágio e o seguro

Não fossem suficientes as “trapalhadas”, depois de meses após o embarque da máquina, Marques escreve uma carta à corte dizendo: “o navio está perdido próximo ao Pará, toda tripulação está a salvo, assim como parte da carga”.

O naufrágio ocorreu em Cabo Maguarinho, na foz do Rio Pará. A carga, depois de retirada do mar, foi transportada para onde hoje é João Pessoa, na Paraíba.

Cabo Manguarinho, na foz do Rio Pará (Latitude: -0.3 Longitude: -48.3667)
Cabo Manguarinho, na foz do Rio Pará

Curiosamente, até hoje não foi esclarecido de que forma Thomas White retirou e transportou toneladas naufragadas no Rio Pará até a Paraíba.

Maliciosamente, os portugueses decidiram acionar o seguro com os corretores londrinos como se todo o equipamento tivesse sido perdido, enquanto sabiam que somente uma parte não havia sido recuperada.

Receberam o valor correspondente a 70% do valor estimado da carga, e, caso recuperassem a carga em bom estado, deveriam restituir o valor.

No final de janeiro de 1813, surpreendentemente Thomas White aparece no Rio de Janeiro com a maior parte do maquinário que lhe havia sido confiado.

Tal fato gerou grande desconforto, haja vista que os portugueses não queriam devolver os valores de indenização recebidos da seguradora.

Cansados de intrigas, White desejava retornar à Inglaterra e Marques a Portugal. Diante disso, as autoridades da coroa portuguesa viram uma oportunidade: concederiam o retorno a ambos, depois sequestrariam o maquinário e o esconderiam, assim ficariam com o valor da indenização: era uma “grande” jogada.

White chegou em casa na metade de julho de 1813, com uma listagem dos materiais salvos no naufrágio. Assim, a extensão da fraude portuguesa tornou-se conhecida para Boulton: quase tudo foi salvo, com o que poderiam ter montado a casa da moeda!

O destino do maquinário

Gaspar Marques ficou no Brasil e, tempos depois fez uma checagem das condições do maquinário, que estava armazenado em uma casa de comércio do Rio de Janeiro. Dada a morosidade, tudo estava corroído, quebrado, e algumas partes haviam sido furtadas.

O que era uma avançada máquina de cunhar moedas quando saiu de Londres, chegou parcialmente funcionando no Rio de Janeiro e agora não passava de um amontoado de peças enferrujadas e imprestáveis.

Até hoje não se sabe o destino final da máquina, permanecendo uma incógnita através dos tempos. Com o passar dos anos surgiram várias hipóteses.

A primeira é que em 1833 a moeda brasileira deu um salto de qualidade, sugerindo a aplicação de componentes da máquina.

É difícil não ver a experiência em solo brasileiro como um grande fracasso, provavelmente o maior prejuízo que a empresa sofreu em toda a sua existência. A negociação, da forma como ocorreu, deixou claro que a colônia portuguesa havia se voltado contra a empresa, e por extensão, contra a era moderna.

Além das trapalhadas da coroa e de algum oportunismo, ao qual não há porque não atribuir contornos de má-fé, houve clara rejeição das novas tecnologias. À época, a máquina a vapor era uma novidade não bem vista pela corte.

Cabe lembrar que a coroa portuguesa, comandada por um líder amedrontado e de muitas formas avesso a progressos, estava apavorada com figura de Napoleão Bonaparte.

Portugal não era mais nada quando comparada à potência que foi na era dos descobrimentos, 300 anos antes: era notório o seu declínio.

Somando-se a isso, a atual burocracia nacional já mostrava seus sinais perversos: corrói e deteriora tudo.

Thomas White, que por conta própria tirou a máquina do fundo do mar e a trouxe sozinho para o Rio de Janeiro, foi incapaz de vencer funcionários governamentais engessados pelo cumprimento de leis. A máquina se deteriorou.

No fim, White foi usado de bucha de canhão ao ser enviado de volta à Inglaterra enquanto a corte se apoderava criminosamente dos valores recebidos a título de indenização por uma carga que foi quase totalmente recuperada.

Posteriormente o Brasil entra na era moderna da cunhagem de moedas, mas a mácula deste episódio é marca indelével na história do Brasil.

Há aqui uma lição importante para todos nós: cada boa intenção no mundo não pode garantir a aceitação de uma ideia cujo tempo ainda não chegou.

Fonte: DOTY, Richard G. The SOHO Mint & The Industrialization of Money. Spink & Son Ltd. 1998.

Autores:
Vinícius de Figueiredo
Pedro Pinto Balsemão (in memoriam)