Tem sido comum ver esta tão bela peça da numária brasileira ser classificada como simples ensaio ou prova de cunho e não como moeda, cunhada em profusão, para compor o meio circulante brasileiro.

Por este motivo, muitos colecionadores não dão a devida atenção a esta moeda que possui um histórico muito representativo.

O mistério que envolve o belíssimo níquel de 400 réis de 1914 é fruto da desinformação ou de relatos orais sem embasamento documental.

Por este motivo, para iniciar a análise desta peça, buscamos, como ponto de partida, os registros documentais, de fontes oficiais, respeitáveis e legalmente incontestáveis.

Desta forma, pretendemos identificar os objetivos desta cunhagem e suas características peculiares, bem como esclarecer os motivos que alteraram tão drasticamente o destino desta peça numismática.

Moeda de 400 réis de 1914 em níquel
Moeda de 400 réis de 1914 em níquel

Durante nossa pesquisa, identificamos o relatório do, então interino Ministro da Fazenda, Dr. João Pandiá Calógeras, apresentado ao Exmo. Sr. Presidente da República em 31 de maio de 1915, referente ao exercício de 1914.

Este documento, impresso pela Imprensa Nacional naquele ano (1915), embora raro, pode ser encontrado a disposição para consulta na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.

Referente à produção da Casa da Moeda em 1914, então sob a direção do Dr. Antônio Ennes de Souza[1], o referido relatório nos dá grande precisão e detalhes sobre o assunto, o que nos obriga a fazer uma transcrição do conteúdo constante entre as páginas 179 e 181, como se segue:

"Officina de fundição - Os trabalhos desta officina foram executados durante o anno de 1914 com toda regularidade, zelo e promptidão. O ouro, a prata, o nickel e o bronze fundido, afinado e ligado, foi o seguinte:

Ouro para particulares, diversos títulos; Fundido, 62.839 grammas; Afinado, 7.791 grammas.

Ouro de titulo 0,917, para cunhagem de moedas de 10$e 20$, 53.981,209 grammas.
Prata de particulares: Afinada, 34 grammas.
Prata do Governo: afinada, 60.763 grammas.
Nickel do Governo: Fundido, 25.700.385 grammas.

Resultante da elaboração do ouro e do nickel destinados á amoedagem que foram ainda refundidos, como sisalhas:
Em ouro, 61.990 grammas.
Em nickel, 35.681.420 grammas.

A secção de afinação de metaes preciosos, além da elaboração das 7.791 grammas de ouro e 60.763 grammas de prata, percebeu ainda aos trabalhos de afinação em 32.140 grammas de ouro de título diversos, pertencentes a particulares e destinadas a serem amoedadas.

Officina de laminação e cunhagem - Esta oficina preparou durante o anno de 1914 e entregou á Thesouraria desta Repartição as moedas e medalhas seguintes:
1.980 moedas de ouro de 20$ no valor de 39:690$, pesando 35.491 grammas; 969 moedas de ouro de 10$ no valor de 9:690$, pesando 8.686 grammas e 610.000 moedas de nickel de 400 réis (do novo cunho) no valor de 244:000$, pesando 7.347.300grammas.

Além dessa importância de 244:000$ em nickel de 400 réis entregue á Thesouraria, a officina preparou mais 923.250 moedas de nickel do mesmo valor na importância de 369:300$, das quaes 645.750 correspondentes a 258:300$, pesando 7.774.770 grammas que foram entregues á Thesouraria no dia 29 de janeiro do corrente anno de 1915, ficando a parte restante em deposito na dita officina.

Preparou mais a officina 30 medalhas de ouro pesando 871,5 grammas; 190 medalhas de prata pesando 8.227,5 grammas; 28 medalhas de bronze pesando 332 grammas; 1.094 ditas de cobre pesando 18.503 grammas.

Foram entregues mais á Thesouraria 205.000 discos de nickel de 400 réis que novamente enviou á officina para cunhar, os quaes accusaram o peso de 2.470.400 grammas. Ficaram em deposito, de accordo com o art. 73 do regulamento em vigor, 36 moedas de ouro de 20$ pesando 615.056 grammas; 12 moedas de nickel de 400 réis pesando 144,720 grammas pertencentes ás partidas entregues á Thesouraria, 12 moedas de ouro de 10$ pesando 107,415.

O movimento de metaes com a officina de fundição foi o seguinte:
Em liga de ouro............ 47.822
Em liga de nickel........... 22.837.670

Sisalha entregue á officina de fundição e recebida por esta officina no mesmo período:
De ouro: entregue 59.328 grammas e recebida 59.299.
De nickel 35.631.420grammas.

Officina de gravura - Nesta officina, cujos trabalhos teem sido executados com desenvolvimento artístico e promptidão, foram feitos ao exercício de 1914:

Seis puncções; duas matrizes e 69 pares de cunhos, padrão de 1914 para moedas de nickel de 400 réis, de acordo com a ordem do Exmo. Sr. Ministro da Fazenda, Dr. Rivadavia da Cunha Correa, de 6 de agosto do mesmo anno:
dous pares de cunhos para moedas de ouro de 20$ e dous ditos para moedas de ouro de 10$; uma chapa gravada para bilhetes do Thesouro do valor de 100:000$; uma chapa para modificar o algarismo relativo a era e sete ditas vindas da officina de impressão para serem suprimidas as eras.

Gravaram-se oito cunhos para medalhas e um puncção; uma puncção para marcar barra; retocaram-se dous ditos destinados ao mesmo fim.

Forneceram-se duas virolas para cunhos e medalas.

A secção de ourivesaria preparou 24 medalhas de ouro, 153 de prata, 16 de cobre e 26 de bronze.

Gravaram-se dous carimbos, sendo um em aço e outro em latão, além de 16 chapas rotas em zinco de diversas procedências.

A officina forneceu duas reproduções em gesso para um baixo relevo em bronze, além de outros trabalhos."[2]

Ministro Ridávia da Cunha Corrêa
Ministro Ridávia da Cunha Corrêa

Com base neste preciso relatório oficial não há como se imaginar que 610.000 moedas, cerca de sete toneladas de níquel, teriam sido cunhadas até o final de 1914 apenas como prova de cunho.

Além do mais, até janeiro de 1915, mais 923.250 moedas semelhantes haviam sido cunhadas, num total de 1.533.250, 18.399 kg de níquel amoedado.

Esta informação pode ser confirmada pelo relatório do Ministro da Fazenda do governo de Epitácio Pessoa, Sr. Homero Baptista, apresentado em 1921, onde também transcreve um trecho do relatório do diretor da Casa da Moeda, o qual aborda a questão do metal a ser utilizado para a cunhagem de novas moedas de Níquel[3]:

"Além da moeda de nickel do antigo cunho cuja existência deve regular pela somma de 2.000:000$, existem 613:000$[4]em moedas de nickel de $400 do cunho não approvado pelo Governo e cuja desmonetização se faz necessária, a fim de não augmentar a circulação com moedas de typos differentes." (BRASIL, 1921, p. 404)

Pelos quantitativos apresentados, definitivamente não se pode conceber esta moeda como prova de cunho.

Assim, um aspecto complementar que deve ser analisado é o motivo pelo qual esta moeda foi cunhada, pois se foi fruto de uma real necessidade do meio circulante, está provada sua destinação.

Kurt Prober abordou este assunto no seu artigo "O Famoso Níquel de 400 réis de 1914", publicado na revista Bahia Numismática em 1953.

Por esta ocasião tornou público uma minuta (impressa e corrigida a caneta) do relatório do diretor da Casa da Moeda do Brasil, Dr. Antônio Ennes de Sousa, o qual explicava claramente esta necessidade.

Este relatório, depois de corrigido e concluído foi enviado para o Ministro da Fazenda (Dr. João Pandiá Calógeras) e foi transcrito no relatório do referido ministro a partir da página 182[5].

Interessa-nos especificamente a necessidade de moeda divisionária de níquel, por este motivo transcrevemos do citado relatório, a partir da página 184, o seguinte teor:

"Em cumprimento dos dispositivos das Leis ns. 559 de 31 de dezembro de 1899, e 741, de 26 de dezembro de 1900, foi mandado cunhar em 1901 na Europa, em virtude do contrato firmado com Haupt Biehn & Comp., a quantia de 30.000:000$ em moedas de nickel dos valores de 400, 200 e 100 réis.

Em 31 de dezembro de 1913 havia em deposito na Thesouraria desta repartição 15.190:153$, que representava mais de 50% da emissão dos 30.000:000$, em ser, depois de 13 annos de ter sido somente trocada em vez de ter sido legalmente lançada em circulação. Attendendo à sahída lenta desse nickel, que ameaçava a continuação de tal depósito por muitos annos, solicitou a Casa da Moeda, no decorrer do ano de 1913, medidas que pudessem alliviar a Thesouraria de tão elevada carga e abastecer o mercado com pagamentos em moeda de troco, cuja falta era então muito sensível. Tendo, com effeito, nos primeiros mezes do exercício de 1914 resolvido o Exm. Sr. Dr. Ministro da Fazenda[6] ordenar em officios diversos a entrega ao Thesouro Nacional da quantia de 14.528:000$ que, reunida ao valor das remessas feitas a diversas delegacias fiscaes nos Estados, na importância de 279:200$, e ao troco effetuado nesta repartição na importância de 316:592$600 e ás fracções pagas pela amoedagem das barras de ouro, na importância de 89$800, reduzido o saldo, de 1913 de 15.190:153$ ao saldo para 1915 de 65:470$600.

O rápido escoamento de nickel em deposito collocou esta Repartição em sérias difficuldades para attender ás exigências do trôco dessa moeda divisionária e fez-me lembrar ao Exm. Sr. Ministro da Fazenda o alvitre de começar a recunhagem do nickel do antigo cunho em deposito na Thesouraria desta Repartição em somma bastante elevada, tendo sido por S. Ex. autorizado a fazer a recunhagem do nickel.

Não existindo nesta repartição os cunhos primitivos feitos na Europa, por terem sido inutilizados em administrações anteriores á minha actual, e não sendo mesmo admissível a reprodução delles pelos artistas da Casa da Moeda, já pelo facto de representar tal trabalho uma imitação, apresentei ao Exmo. Sr. Ministro da Fazenda que os approvou, os modelos destinados á recunhagem, ordenando que fosse o trabalho feito com urgência, em offício s/n, de 6 de Agosto de 1914.

Em cumprimento á essa ordem procedeu-se com a máxima urgência á recunhagem das moedas de nickel do antigo cunho, tendo actualmente a Thesouraria em deposito a importância de 502:300$ e 111:000$ que ainda se acha em confecção na officina de laminação, além de 4.337.080 grammas em discos que representam approximadamente 361.423 discos que, cunhados, equivalem a mais 144:569$200 em moedas, que só poderão ser postas em circulação por ordem de V. Ex. não só em pagamentos, como em substituição de moedas de igual valor."

Mediante esta exposição do Dr. Ennes de Sousa, compreende-se que o níquel estocado durante vários anos foi liberado de forma rápida, sem a devida precaução da troca das moedas do antigo padrão, causando uma necessidade para a própria Casa da Moeda que ficou com quantitativos de níquel muito baixos para manter as substituições das moedas do antigo cunho (anteriores às de 1901) pelas do novo tipo e peso.

Isto para o cumprimento da Lei Nº 559, de 31 de dezembro de 1898[7], que alterou o valor e o peso das moedas de níquel[8].

Diante destas informações, não resta dúvida que foram cunhadas para suprir uma necessidade de moedas divisionárias, questão sempre presente no meio circulante brasileiro.

Fica, no entanto, o questionamento sobre os motivos que levaram a não introdução desta belíssima moeda no meio circulante.

Contudo, deixaremos esta questão para o final do artigo; por hora, apenas alertamos para a última frase do relato acima transcrito:

"...que apenas poderão ser postas em circulação por ordem de V. Ex. não só em pagamento, como em substituição de moeda de igual valor."

Nesta parte do relatório, Ennes de Souza se dirige ao, então Ministro interino da Fazenda, Dr. João Pandiá Calógeras.

Vejamos agora algumas informações técnicas sobre o níquel de 1914.

Informações técnicas e variante de cunho

O cunho de reverso, ou seja, o lado onde se encontram o valor e a data, foi aberto pelo gravador João da Cruz Vargas. Segundo Prober, este representa o primeiro trabalho assinado pelo referido gravador.

Pode-se observar, no quadrante inferior esquerdo da face, a marca de assinatura deste gravador, representada por um V estilizado[9].

O mesmo monograma é encontrado nas moedas de bronze-alumínio de 500 e 1000 réis da série de 1924 a 1931, cuja imagem de anverso representa a abundância[10], e também em algumas medalhas do Bi-Centenário de Cuyabá, de 1919[11].

Monograma do gravador João da Cruz Vargas no níquel de 1914
Monograma do gravador João da Cruz Vargas no níquel de 1914

Monograma do gravador João da Cruz Vargas nas moedas de 500 e 1.000 réis de 1924 e 1931
O mesmo monograma nas moedas de 500 e 1.000 réis de 1924 e 1931

Quanto ao cunho de anverso, Efígie da República, este permanece sem uma garantia de autoria precisa, contudo Kurt Prober afirmou em seu trabalho ter indicações de ser de autoria do famoso artista e gravador Augusto Giorgio Girardet.

Esta moeda possui uma variante; sendo conhecidas, original e variante, como PESCOÇO BAIXO E PESCOÇO ALTO, de acordo com a distância entre o queixo e o ombro da imagem.

Esta distância é da monta de 0,8 mm para as moedas de Pescoço Baixo e 1,2 mm para as de Pescoço Alto.

Ambas variantes aparecem aproximadamente com a mesma frequência, sendo a de Pescoço Alto ligeiramente mais escassa (cerca de 10%).

Como pode ser observado no relatório do Ministro Pandiá Calógeras, foram confeccionados 69 pares de cunho para esta moeda, sendo assim seria de se esperar que a ocorrência de uma variante fosse muito menor que a do cunho original.

Neste sentido a explicação que parece ser a mais aceitável é que a alteração não tenha ocorrido em um cunho e sim numa punção.

Os modelos artísticos (positivo), em tamanho ampliado, eram reproduzidos para o tamanho de uma moeda por intermédio de um pantógrafo, o que recebe o nome de punção (positivo).

Desta punção, por intermédio de uma prensa de transporte, confeccionavam-se os cunhos (negativos), necessários para a produção das moedas.

Normalmente, o primeiro par de cunhos era mantido guardado, sem uso, para que se pudesse reproduzir uma punção, no caso desta se quebrar. Estes cunhos reservados são chamados de matrizes.

Como existiram seis punções (três pares) e sessenta e nove pares de cunhos, certamente o retoque que originou a variante ocorreu numa punção.

Provavelmente ocorreu um "tremido" na altura do ombro da imagem durante a confecção de uma das punções, obrigando o gravador a fazer uma pequena correção[12]. Desta maneira, a correção passou-se para diversos cunhos.

À esquerda, variante pescoço curto e à direita variante pescoço longo da moeda de níquel de 400 réis de 1914
Diferença entre os cunhos Pescoço Curto e Pescoço Longo

Porque os 400 réis de 1914 não foram lançados ao meio circulante?

Quem teve a oportunidade de ler o artigo de Kurt Prober, publicado na revista Bahia Numismática de 1953, pôde observar que o pesquisador fez um relato da forte personalidade do diretor da Casa da Moeda, Dr. Antônio Ennes de Souza, e de atritos deste com o Ministro da Fazenda, Dr. Rivadávia da Cunha Corrêa.

Estes problemas teriam culminado com uma auditoria na Casa da Moeda, determinada pelo senhor Ministro, com o objetivo de apurar irregularidades administrativas do diretor da Casa.

A equipe de auditores estaria reservada uma sala insalubre, além de ter sido tratada com descaso, sonegando-lhe informações e impedindo qualquer tipo de conclusão.

Prober finaliza o artigo atribuindo a "uma vingança pueril" do Ministro da Fazenda, Dr. Rivadávia Corrêa, a não autorização para circulação dos "níqueis do Dr. Ennes de Souza".

Permanecendo estocados na Casa da Moeda até 1927, quando foram definitivamente fundidos para alimentara produção das moedas do novo padrão (de 1918 a 1935)[13].

Nas linhas que se seguem, não pretendo negar a teoria de Kurt Prober, contudo, e tão somente, apresentar nova hipótese, baseada nas contingências político-econômicas e amparado nos relatos deixados à época pelas personalidades envolvidas na questão. Pensamos que, desta forma, poderemos lançar alguma luz sobre este curioso episódio da numismática brasileira.

Voltemos à pergunta central: Porque os níqueis de 400 réis de 1914 não foram lançados no meio circulante?

O primeiro ponto a ser observado é que o Ministro Rivadávia Corrêa permaneceu no Ministério da Fazenda apenas de 09 de maio de 1913 até o dia 15 de novembro de 1914[14], data em que assumiu o Sr. Dr. Sabino Alves Barroso júnior, convidado pelo novo Presidente, Sr. Venceslau Braz.

Considerando-se que os referidos níqueis só foram cunhados após 06 de agosto de 1914 (provavelmente a partir de setembro), quando Rivadávia teria dado autorização, até o fim de seu mandato transcorreram pouco mais de três meses e a cunhagem daquelas moedas deve ter prosseguido por período posterior, já que uma das parcelas (de 645.750 moedas) foi entregue à Tesouraria no dia 29 de janeiro de 1915.

Neste momento, Rivadávia Corrêa já estava fora do Ministério. Acresce o fato de que no relatório apresentado ao Presidente, na seção de 31 de maio de 1915[15], ao transcrever parte do relatório do Diretor da Casa da Moeda, este informa que só o Ministro da Fazenda poderia autorizar a entrada das moedas de níquel em circulação.

O Ministro da Fazenda, a partir daquele dia, passou a ser Pandiá Calógeras e não mais Sabino Alves Barroso Júnior; portanto nem este, nem Rivadávia Corrêa poderiam ser responsabilizados pela questão, já que oficialmente já não poderiam fazê-lo.

Assim, vemos que a recusa em autorizar a entrada dos níqueis em circulação não pode residirem uma vingança pueril de Rivadávia Corrêa.

No entanto, persiste a pergunta: porque o sucessor no Ministério (Ministro Calógeras) não autorizou os novos níqueis?

Bem, deixando a questão da responsabilidade individual de lado; parece que a responsabilidade coletiva, ou melhor, um consenso de que os níqueis, embora já cunhados, não devessem ser postos em circulação explica melhor a questão.

Para este posicionamento alguns fatores devem ser analisados:

A incerteza e a instabilidade mundial

Durante o segundo semestre de 1914 operou-se fatos históricos, principalmente na Europa, que mudaram as feições do Mundo como se conhecia à época, bem como a forma de pensar e agir de toda a humanidade. A estas transformações o Brasil não esteve imune.

Em fins de junho de 1914, o arquiduque austríaco, herdeiro do trono, numa inopinada visita à Bósnia-Herzegovina, sotreu dois atentados. O primeiro, com uma bomba, deixou um oficial gravemente ferido; minutos depois um jovem de 19 anos, de nome Gabriel Princip, efetuou dois disparos em direção ao carro do arquiduque.

Francisco Fernando foi atingido no pescoço, tendo sua carótida rompida. Sua esposa Sophie, condessa de Choteck e duquesa Hohenberg, foi ferida no baixo-ventre. Minutos depois ambos estavam mortos[16].

Comprovado o envolvimento ou aquiescência do governo sérvio, este recebeu uma carta com severas exigências da Áustria, a qual se preparava para riscar a Sérvia do mapa.

A Rússia, por sua vez, mobilizou-se para evitar a humilhação dos sérvios. Ao lado da Áustria estava o poderoso exército germânico de Guilherme II.

Toda a Europa estava com os nervos à flor da pele. Em primeiro de agosto, o embaixador alemão entregou um ultimatum à Rússia para que cessasse sua mobilização; diante da recusa do Ministro das Relações Exteriores deste país, foi-lhe entregue uma declaração de guerra.

No dia 3, a Alemanha declarou guerra à França. Sentindo-se compelida pela Tríplice Entente, a Inglaterra posicionou-se a favor da Sérvia[17]. Desta forma, finalizou o tenso mês de julho e agosto iniciou com a perspectiva de uma hecatombe mundial.

A incerteza no futuro e a instabilidade refletiram diretamente nas economias sul-americanas.

Passemos a palavra ao Dr. Rivadávia Corrêa:

"O menor incidente poderia dar causa à conflagração geral, e assim aconteceu com o desenrolar do drama de Sarajevo. A situação de dúvida, ou antes, de quase temor que dominou a Europa, quando à permanência e a solidez da paz continental, causou grande abalo nos mercados financeiros europeus que veiu refletir-se de modo desastroso nas praças commerciaes da América do Sul. Ao grande desenvolvimento e à enorme facilidade de crédito que caracterizaram os annos 1910, 1911 e 1912, seguiu-se, com a declaração da guerra balkanica, uma immensa e repentina retração de capitães.

Os bancos europeus, comprehendendo a necessidade de augmentar os seus encaixes metálicos, restringiram todas as operações e ordenaram ás fíliaes e aos bancos com que mantinham relações na América do Sul que liquidassem negócios e remettessem fundos." (CORRÊA, 1919, p. 48)

Assim, os efeitos da guerra na Europa atravessaram o Atlântico e atingiram rapidamente a economia brasileira, deixando para o segundo semestre de 1914 uma incerteza quanto à capacidade do Governo de arcar com seus compromissos financeiros;

A desorganização do meio circulante

Em 1914 havia sido introduzido uma grande quantidade de níquel do novo peso e cunho (de 1901), cerca de 15.000 contos de réis que se encontravam desde 1901 na tesouraria da Casa da Moeda e ainda não haviam sido distribuídos[18].

Além destas moedas, encontrava-se em circulação uma soma muito grande de moedas de níquel do cunho antigo, com peso e tipo diferentes do previsto na Lei Nº 559, de 31 de dezembro de 1898.

Em 1918, o diretor da Casa da Moeda estimava o montante destes níqueis antigos em 10.000 contos de réis[19]. Três anos depois, em 1921, ainda encontrava-se em circulação cerca de 2.000 contos de réis destas moedas.

No relatório do Ministro da Fazenda, Sr. Homero Baptista, relativo ao exercício de 1920; os níqueis de 1914 são citados como "não approvados pelo Governo" para "não aumentar a circulação com moedas de Typos differentes" (grifo meu)[20].

Sete anos depois da cunhagem dos níqueis de 1914, falar-se claramente que eles não entraram em circulação para não causar mais confusão no meio circulante parece deixar claro um consenso neste caso.

A Lei de Greshan

Em linhas gerais o fenômeno chamado de Lei de Creshan traduz-se no fato de que a "moeda ruim" expulsa a "moeda boa" do meio circulante.

A teoria de Thomas Creshan (1519 - 1579) explica-se por duas moedas de mesmo valor liberatório, ou seja, mesma capacidade de pagamento ou de compra, mas tendo uma delas mais metal nobre ou metal mais nobre do que da outra (exemplo: ouro / prata; prata / níquel, etc.), forçosamente acontece que o usuário guarda a moeda forte e libera a moeda fraca[21].

Ocorre que foi emitida boa quantidade de moedas de prata nos valores de 500, 1.000 e 2.000 réis, entre os anos de 1906 e 1912 (3º Tipo), além disso, nos anos de 1912 e 1913 foram lançadas, no meio circulante, novas séries de moedas de prata nestes valores (4º e 5º Tipos).

A imposição de mais moedas divisionárias de níquel deveria afugentar parte desta prata em circulação.

Veja-se que para a quantia de 2.000 réis, poder-se-ia utilizar 5 (cinco) moedas de 400 réis de níquel, com peso total de 60 gramas; ou 20 gramas de prata (900 milésimos) em uma moeda de 2.000 réis, ou duas de 1000, ou quatro de 500 réis[22].

A preferência por se guardar a prata acaba por drenar este metal do meio circulante. Nesta época, a redução de metais mais nobres no meio circulante ainda era sinal de uma economia minguante e, naquele momento de crise internacional, o que menos interessava era ter uma economia com aparência de decadente ou não confiável;

Crise econômica de 1914

A crise econômica que se instalou no final da presidência do Marechal Hermes da Fonseca e colocou em xeque toda a política econômica do então Ministro da Fazenda, Dr. Rivadávia da Cunha Corrêa, parece ter tido suas origens muito mais distante no tempo, de fato remonta ao início do regime republicano.

O velho costume imperial de aprovar um orçamento deficitário passara à República de forma natural. Os primeiros governos tiveram o mérito de agravar o déficit público ao ponto da insolvência.

Desta forma, no início do quarto governo republicano, o presidente Campos Sales e seu ministro da Fazenda, Dr. Joaquim Murtinho, vendo o Tesouro Nacional em plena falência e uma dívida externa impagável, empreenderam uma cruzada junto aos banqueiros ingleses, na qual triunfaram com o funding loan, uma negociação que daria fôlego ao novo governo e uma perspectiva de retomada do crescimento.

Obtiveram um empréstimo de 10 milhões de libras esterlinas para o pagamento dos juros da dívida externa a serem quitados nos três anos seguintes; as amortizações seriam suspensas por 10 anos, além dos três anos iniciais (até junho de 1911).

A contrapartida, ou garantia, foi a penhora de toda a renda da alfândega do Rio de Janeiro (e outras, se houvesse necessidade), das receitas da Estrada de Ferro Central do Brasil e do abastecimento de água do Rio de Janeiro[23].

A medida de saneamento da economia brasileira e fortalecimento da moeda, através do combate à inflação, não foi executado com seriedade. De tal forma que nos governos seguintes o déficit público continuou a aumentar e novos empréstimos foram necessários. Iniciou-se o ciclo de empréstimos para pagar empréstimos.

No primeiro decênio da República, exceto o exercício de 1891, todos encerraram em déficit. Igualmente, no segundo decênio, os exercícios de 1904, 1908, 1909 foram negativos; seguiu-se o esquema em 1910, 1911 e 1912.

Enquanto a receita do Tesouro aumentava e o país parecia prosperar, o déficit aumentava desproporcionalmente. Diversos empréstimos foram realizados para que se pudesse manter a máquina governamental em funcionamento e prosseguir-se com os investimentos em infraestrutura.

A União devia no exterior, quando se concretizou o funding loart, £ 34.697.300; quando o Mal. Hermes assumiu a presidência, essa dívida era de £ 88.000.000.

Acresce que os dois principais produtos de exportação brasileiros, o café e a borracha, responsáveis por uma parcela significativa da receita de exportação (85%) estavam em plena crise, com a baixa irremediável de seus preços a partir de maio de 1913, chegando a números irrisórios em 1914.

As importações, por sua vez, fonte de impostos aduaneiros que representavam cerca de 66% da receita do orçamento, caíram a 33% no 2º semestre de 1914, comparado ao ano anterior.

Dessa forma chegara também a vez de Rivadávia Corrêa barganhar seu funding para garantir o encerramento do governo de Hermes da Fonseca. Coisa que fez demonstrando grande capacidade e tino de negócio.

Ficou acertado um empréstimo 20 milhões de libras, muito favorável ao Brasil com taxa de apenas 5%.

Quando parecia estar salva a economia brasileira, com fundos europeus, sobreveio o episódio de Sarajevo e o agravamento da situação determinou a suspensão das negociações no dia 27 de julho, um dia antes que a Austria-Hungria declarasse guerra a Sérvia. A bomba-relógio criada pela República explodira em 1914[24].

Nos meses que se seguiram, as atenções do Ministro da Fazenda foram todas voltadas para o esforço de dobrar os banqueiros ingleses no sentido de obter o 2º funding loan. Este, finalmente foi fechado, em termos não tão favoráveis e limitado a 15 milhões de libras esterlinas, renegociando a dívida externa do país em 63 anos com resgates a partir de 1927.

Ministro Pandiá Calógeras
Ministro Dr. João Pandiá Calógeras

Conclusão

A primeira conclusão que parece muito evidente, após a análise dos relatórios dos Ministros da Fazenda, é que realmente estas moedas foram cunhadas efetivamente em volume adequado para abastecer o meio circulante e não constituíram simples provas de cunho.

Quanto à ordem de cunhagem, não parece lícito contestar que a ordem para a cunhagem das moedas de níquel de 400 réis tenha tido a aquiescência do Ministro Rivadávia Corrêa, já que consta em documento oficial (Relatório do Ministro Pandiá Calógeras).

Por outro lado, condená-lo por não ter autorizado a sua entrada no meio circulante, rotulando, ainda, esta atitude como uma "vingança pueril" contra o diretor da Casa da Moeda, também não parece fazer sentido, já que o governo do presidente Hermes da Fonseca terminou pouco tempo depois e as atenções do Ministro da Fazenda estavam voltadas para a renegociação da dívida externa.

Considerando-se que o governo seguinte também não autorizou a circulação das novas moedas, só nos resta crer que diante das contingências políticas e econômicas criadas pelo início da Primeira Guerra Mundial; pela desorganização do meio circulante com dois padrões de moedas de níquel, pela incerteza quanto à confiabilidade deste meio circulante e pela própria crise econômica que o Brasil tentava enfrentar negociando com capital europeu; criou-se um consenso (embora tácito e silencioso) que não recomendava a liberação de tais níqueis.

De fato, a resposta parece estar no conjunto de esforços desesperados para salvar a economia brasileira diante de um iminente colapso. Naquela situação, qualquer incoerência econômica viria à tona como um grande mal responsável pela derrocada econômica.

Assim, foi melhor "esquecer" aqueles níqueis na Casa da Moeda até que a tempestade passasse. Permanecendo como reserva de metal até 1927, quando foram fundidos e o metal reutilizado em novas moedas.

Referências bibliográficas
BRASIL, Ministério da Fazenda. Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil pelo Dr. Antônio Carlos Ribeiro da Silva, Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda, no anno de 1918, volume I. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1919.

BRASIL, Ministério da Fazenda. Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil pelo Dr. João Pandiá Calógeras, Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda, no anno de 1915, volume I. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1915.

BRASIL, Ministério da Fazenda. Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil pelo Sr. Homero Baptista, Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda, no anno de 1920. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1921.

BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. Vol. II. 25ª Ed. Editora Globo. Rio de Janeiro, 1983.

CALÓGERAS, João Pandiá. A política monetária do Brasil. Tradução de Thomaz Newlands Neto. Brasiliana volume 18, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1960.

CORRÊA, Rivadávia da Cunha. A verdade sobre a situação financeira do Brasil em 1914 (Discurso proferido no Senado Federal a 28 de dezembro de 1918). Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1919.

FERRARI, Cesar. A Lei de Greshan, In: Boletim da SNB. n° 32, Sociedade Numismática Brasileira, São Paulo, 1970.

LUDWIG, Emilio. Julho de 1914. Tradução de Mário de Sá, Ed. Livraria do Globo, Porto Alegre, 1933.

PROBER, Kurt. O famoso níquel de 400 réis de 1914. In: Bahia Numismática, Nos. 3 e 4, Salvador, 1953.

Notas de rodapé

[1] O Sr. Antônio Ennes de Souza já havia exercido o cargo entre 1889 e 1890.

[2] BRASIL, Ministério da Fazenda. Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil pelo Dr. João Pandiá Calógeras, Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda, no anno de 1915, volume I. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1915.

[3] BRASIL, Ministério da Fazenda. Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil pelo Sr. Homero Baptista, Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda, no anno de 1920. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1921.

[4] 613 contos de réis correspondem a 1.532.500 moedas (613.000.000 / 400).

[5] BRASIL, 1915

[6] Dr. Ridavia da Cunha Corrêa; antecessor do Dr. Sabino Alves Barroso Júnior, o qual, por sua vez, antecedeu o autor do relatório apresentado em maio de 1915.

[7] Lei que aprovou o Orçamento de 1899.

[8] BRASIL, Ministério da Fazenda. Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil pelo Dr. Antônio Carlos Ribeiro da Silva, Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda, no anno de 1918, volume I. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1919.

[9] Prober visualizava como um "Y deitado".

[10] Possivelmente inspirado em "La Semeuse" (a semeadora) de Oscar Roty; imagem encotnrada na moeda francesa de 1 (um) franco de 1898.

[11] PROBER, Kurt. O famoso níquel de 400 réis de 1914. In: Bahia Numismática, Nº 3 e 4, Salvador, 1953.

[12] PROBER, 1953.

[13] PROBER, 1953.

[14] CORRÊA, Rivadávia da Cunha. A verdade sobre a situação financeira do Brasil em 1914 (Discurso proferido no Senado Federal a 28 de dezembro de 1918). Imprensa Nacional, Rio de janeiro, 1919.

[15] Nesta data o Ministro Sabino já se encontrava afastado e assumira interinamente o Dr. Pandiá Calógeras, de 01 de maio a 08 de junho, após esta data assumiu o Ministério da Fazenda efetivamente.

[16] LUDWIG, Emilio. Julho de 1914. Tradução de Mário de Sá, Ed. Livraria do Globo, Porto Alegre, 1933.

[17] BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. Vol. II. 25º Ed. Editora Globo, Rio de Janeiro, 1983.

[18] BRASIL, 1915.

[19] BRASIL, 1919.

[20] BRASIL, 1921.

[21] FERRARI, Cesar. A Lei de Greshan, In: Boletim da SNB. Nº 32, Sociedade Numismática Brasileira, São Paulo, 1970.

[22] VIEIRA, Catálogo Vieira de Moedas Brasileiras 2007, 12ª Ed. Rio de Janeiro, 2007.

[23] CALÓGERAS, João Pandiá. A política monetária do Brasil. Tradução de Thomaz Newlands Neto. Brasiliana volume 18, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1960.

[24] CORRÊA, 1919.