Carimbo do Pará: a moeda da Cabanagem
A contramarca aplicada nos cobres da província do Grão-Pará traz em si mais do que os efeitos das leis regenciais que visavam reorganizar o meio circulante brasileiro e reduzir o cobre falso em circulação. Na verdade, carrega a marca de uma profunda ideologia liberal, ímpar no Brasil Imperial, e fruto da maior revolução genuinamente popular de nosso país.
Ao começar esta análise tem-se que reportar o período imediatamente anterior. O mundo assistiu atônito aos resultados da Revolução Francesa e assimilava avidamente os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.
A província do Pará, como as demais, também não era imune a tais ideais. Devido à proximidade territorial com a Guiana Francesa, a voz de Montesquieu ecoava nos mais distantes redutos da Amazônia.
Movimentos insurgentes, levantes de escravos e motins na colônia vizinha influenciavam o modo de pensar e agir dos brancos, caboclos, negros libertos, escravos e índios no Pará[1].
Não se pode esquecer que, com a vinda da Família Real para o Brasil, D. João, em represália a atitude francesa de invadir Portugal, ordenou a invasão e ocupação da Guiana Francesa e foram os soldados paraenses que lá ocuparam essa colônia de 1809 até 1817.
É notório, também, que o respeito desses brasileiros pelo povo da Guiana e por suas leis vigentes redundou numa grande simpatia manifestada, calorosamente por ocasião da despedida das tropas para o retorno ao Brasil.[2]
Outro episódio que demonstra o grau de influência das ideias liberais no povo paraense é a Revolução Constitucional do Porto. O sucesso desta revolução, que culminou com o retorno de D. João VI para Portugal, foi a adesão de Lisboa e de três províncias brasileiras, sendo que além do Rio de Janeiro e Bahia, o Pará foi a primeira província a declarar, em 1° de janeiro de 1821, adesão à Revolução do Porto.
Este movimento foi encabeçado pelo jovem Felipe Alberto Patroni Martins Maciel Parente (Acará-Pará 1798 — Lisboa, 15 de julho de 1866) que, em poucos dias, disseminou as ideias liberais e democráticas da nova Constituição portuguesa, tanto no meio dirigente quanto no âmbito popular e militar. Na assembleia provincial, assumiu a direção do movimento o coronel Francisco José Rodrigues Barata.
O resultado para a província foi a formação do primeiro governo constitucional aclamado pelo povo. Tal fato encheu o paraense brasileiro-nato de esperança e motivação na participação dos governos da província.[3]
O apoio à Lisboa Constitucional não foi retribuído na mesma medida à província do Grão-Pará, pelo contrário, a adesão da Corte do Rio de Janeiro apenas reforçou o tratamento dado a esta província, como objeto de exploração portuguesa.
Desta forma, o processo de independência política do nascente Império Brasileiro, foi visto com desconfiança pelo povo paraense, o qual vislumbrava apenas uma mudança de direitos exploratórios de Lisboa para o Rio de Janeiro.
Repletos de ideais liberais, esta população viu-se diante de uma proclamação de independência ambígua, que mantinha uma Corte "portuguesa" no Rio de Janeiro, privilegiando os antigos colonizadores e negando o direito de cidadania às populações pobres em todas as províncias do país.
O processo de aceitação da independência do Brasil no Pará deu-se de forma lenta e não sem lutas e graves repressões. Vindo esta província a aderir à independência do Brasil apenas a 15 de agosto de 1823, após a chegada de uma esquadra enviada do Maranhão pelo Almirante Cochrane, mercenário inglês contratado por D. Pedro I, e comandada pelo, também inglês, capitão tenente John Pascoe Greenfell.[4]
O processo de Independência trouxe muitas promessas e poucas mudanças. Diante de tais circunstâncias as manifestações populares de desagrado à Corte e, principalmente, ao Governo Provincial foram se agravando.
Em 7 de agosto de 1831, um motim político, um golpe antiliberal, derrubou o presidente da província, Bernardo José da Gama, Visconde de Goiana, e levou ao poder Marcellino José Cardoso[5] (caramuru[6] convicto e segundo deputado mais votado)[7], reinflamando os ânimos nativistas na província.
Neste período conturbado a questão do cobre na província não foi esquecida, pois o cobre falso que expulsava tanto as moedas de ouro e prata quanto as de cobre cunhadas na Corte (de bom peso e tipo), era uma de suas preocupações. O descaso da Corte em tomar medidas eficazes para garantir um meio circulante confiável, tornava a província um verdadeiro sorvedouro de moedas falsas ou de valor depreciado, entravando a economia provincial.
Em fevereiro de 1832[8], o Conselho Geral da Província enviou uma representação por escrito para a Corte solicitando e sugerindo medidas mais eficientes para combater o cobre falso na província:
"Neste estado precário e degradante do crédito nacional é com igualdade garantida pela constituição do império e pelo zelo da Fazenda Pública, que este Conselho Geral deve esperar esta pronta providência do poder legislativo, a fim de poder acabar com aquele pernicioso mal da moeda falsa circulante nesta província, fazendo-se extensiva a essa a resolução de 27 de novembro de 1827[9], pela maneira seguinte:
Art. 1° Que o Governo seja autorizado a mandar trocar toda moeda de cobre falsa e depreciada que circular na província do Pará.
2° . Que o troco se faça por moeda de cobre da que há cunhada na Capital do Império e por cédulas emitidas pelo Tesouro para cujo fim se remeterá pelo mesmo Tesouro a quantia de duzentos contos de réis em moedas de cobre, seiscentos contos em apólices para realizar-se o troco a saber do cobre que houver na Capital desta província em quinze dias e do mais que houver pelo interior no próximo prazo de dois meses que se deve publicar seis dias depois de nesta província chegar esta medida, findo o qual prazo ficará sem valor e sem recebimento toda a moeda falsa e depreciada que aparecer e se procederá criminalmente contra os que a introduzirem devendo estender-se este prazo para a comarca do Rio Negro será aplicável depois de lá ser publicada esta medida.
3°. Essa importância que se adiantar em moeda e cédulas será debitada à Tesouraria desta província e será amortizada, a saber, primeiro com a moeda de cobre que se recolher, segundo, com as apólices que vierem para o futuro se forem resgatando.
4°. Para o resgate das apólices ou cédulas emitidas se aplicarão primeiro os fundos provenientes da alienação e venda das fazendas sequestradas aos mercenários em Marajó: segundo a terça parte dos rendimentos da alfândega.
5°. Que a moeda de cobre trocada pela forma acima determinada, seja fundida e cunhada de novo nesta província, enviando-se pelo Tesouro público ou pela Casa da Moeda da Corte, os cunhos com valor e tipo regular e a máquina para o seu fabrico, devendo esses cunhos igualmente servirem para se conferir na tesouraria e na Alfândega da província as moedas que depois do prazo da extinção da falsa aparecerem.
6°. Finalmente que a junta da fazenda não possa fazer aplicações da moeda e das apólices que vierem da Corte se não ao dito troco, nem tão pouco aplicar a outros fins se não ao resgate das apólices os fundos designados no artigo 4°, ficando os membros da junta sujeitos às penas do código criminal. Para os que abusam do poder, e se tudo informará a mesma junta ao Conselho Geral no terceiro dia de suas seções ordinárias."[10]
Embora o motim de 1831 tenha sido um duro golpe nos ideais liberais da província, este abriu caminho para os próprios liberais, mostrando que o presidente enviado pela Corte não era intocável e a reação desta era fraca e lenta.
Em 3 de outubro de 1833, a Assembleia Geral Legislativa (na Corte) aprovou a lei n° 52 e seu regulamento no dia 8 do mesmo mês. Esta lei determinava o recolhimento de todo o cobre e sua troca por cédulas especialmente impressas para o troco desta moeda, além recolhimento de 5% do montante da operação para a Fazenda Nacional[11].
Tal operação mostrou-se extremamente morosa e ineficaz, já que mantinha o valor das moedas depreciadas igual ao nominal. Também as cédulas não chegavam em quantidade suficiente, sendo fornecidos conhecimentos impressos na própria província, os quais não podiam ser trocados devido à falta das cédulas próprias para o troco do cobre[12].
Ao motim de agosto de 1831 sucedeu-se o levante de 16 de abril de 1833[13] e, finalmente, em sentido inverso (movimento liberal nativista) um novo levante tomou corpo de revolução em janeiro de 1835[14], começava a Cabanagem.
Certamente o mundo poucas vezes viu uma revolução genuinamente popular de tamanho vulto, talvez apenas superada em magnitude pela revolução popular mexicana. A Cabanagem representou o primeiro momento em que caboclos, negros, escravos e índios experimentaram o gosto da igualdade e liberdade, exercendo o direito de cidadania à força.
O principal expoente na luta liberal pela igualdade e liberdade era, desde a década de 20, o cônego João Batista Gonçalves Campos, o qual, por possuir uma língua ferina ao denunciar a tirania "portuguesa" na província, foi preso e espancado diversas vezes.
No dia 31 de dezembro de 1834, o cônego Batista Campos veio a falecer, irrompendo, assim, a ira da população[15], principalmente negros, índios e caboclos, que agora se viam politicamente órfãos. Na manhã de 7 de janeiro de 1835, a população pobre de Belém (em sua maioria brasileiros natos) estava incontrolável.
O presidente da província, Bernardo Lobo de Souza, foi executado à porta do Palácio do Governo. Em sua substituição, o tenente-coronel Félix Antônio Clemente Malcher foi aclamado pelo povo como sucessor na presidência da província, sendo o primeiro presidente cabano[16].
Malcher era um latifundiário e enriquecera às custas das leis da Corte. Um de seus primeiros atos foi tentar pacificar a província procurando desarmar os revoltosos cabanos e pagar as tropas que já começavam a se amotinar por falta de soldo. O novo presidente mandou que se pagasse a tropa com cobre.
No entanto, foi informado que nos cofres públicos não havia moedas desta espécie. Por isso mandou que se fizesse o levantamento do cobre recolhido (pela lei nº 52) e que ainda não tinha sido remetido à Corte.
De posse deste levantamento, ordenou que se pagasse a tropa com estas moedas, as quais depois de punçadas na tesouraria com uma contramarca, voltariam a circulação com valor de um quarto do nominal, na razão de seiscentos e setenta réis por libra. Seu ato foi publicado em bando no dia 14 de janeiro:
"Felix Antônio Clemente Malcher, cavaleiro da ordem de Cristo, tenente-coronel de 2° de linha e presidente da província do Grão-Pará.
Urgindo o bem público que a moeda de cobre denominada de Cuiabá, que ora se acha inutilizada na Tesouraria desta província seja de algum proveito à Nação, e sendo justo que com ela se ocorra as despesas do Estado, por aquele valor de cobre amoedado, que não prejudique os interesses nacionais, ordeno o seguinte:
A moeda de Cuiabá do valor representativo de oitenta réis valerá vinte réis, nunca sendo menos de seiscentos e setenta réis por libra.
A moeda de Cuiabá do valor representativo de quarenta réis valerá dez réis, nunca sendo menos de seiscentos e setenta réis por libras.
A moeda de Cuiabá do valor representativo de vinte réis, que tenha o tamanho e o peso daquela do valor representativo de quarenta réis, também valerá dez réis.
E para que chegue à notícia de todos e ninguém possa alegar ignorância, mando que seja este publicado na forma e estilo pelas ruas principais desta capital, e depois afixado na porta principal do palácio do Governo.
Dado nesta cidade de Belém do Grão-Pará sob meu sinal e selo das Armas do Império, aos 14 dias do mês de janeiro de 1835, 14° da Independência e do Império. Eu, João Miguel de Souza Leal Aranha, secretário do Governo o fiz escrever e subscrevi.
Félix Antônio Clemente Malcher, presidente. – Está conforme.
João Miguel de Sousa Leal Aranha, secretário do Governo."[17]
A partir do bando de 14 de janeiro, vemos que as moedas de 80 e 40 réis de Cuiabá passaram a valer sua quarta parte do valor nominal. O confuso sistema monetário brasileiro também vitimara Malcher, mandando punçar e retornar à circulação uma moeda inexistente (20 réis de Cuiabá de diâmetro e peso igual ao de 40).
Talvez se referisse a moedas de algarismos romanos de XX réis do final do Período Colonial, sendo estas com diâmetros e pesos idênticos as de 40 réis. São cunhagens da Bahia de 1812 a 1816, 1820 e 1821 e, ainda, do Rio de Janeiro de 1818 a 1822.
Existiam moedas cunhadas para circular em Minas Gerais para o troco do ouro, os Vinténs de Ouro, moedas de cobre de 37 ½ réis também com diâmetro e pesos idênticos as de 40 réis de Cuiabá. Estas são as da Casa da Moeda de Minas Gerais de 1818 a 1821, de 1823 a 1828 e, do Rio de Janeiro, de 1818.
Da mesma forma, os cobres do Império de 20 réis da Casa da Moeda da Bahia de 1825, 27, 28 e 30 e do Rio de Janeiro de 1823 e 24, também tinham os diâmetros especificados para as moedas de 40 réis de Cuiabá, contudo as primeiras com peso acima e as demais com peso abaixo. Algumas destas com certeza receberam carimbo por engano.
Quanto às moedas de Goiás de 80 e 40 réis cunhadas em 1832 e 1833, igualmente já recolhidas, elas tinham exatamente as mesmas características das de Cuiabá e foram remarcadas.
Kurt Prober acreditava que estas tenham sido punçadas por alguma ordem complementar que ainda não temos conhecimento[18]. As moedas de Goiás mais antigas tinham diâmetro menor para 80 réis e maior para 40 réis, mas tinham o mesmo peso e também foram remarcadas. Veja nas tabelas abaixo[19]:
Valor Nominal | Data | Diâmetro / Peso | Carimbo |
---|---|---|---|
80 réis | 1826-1828 e 1830 | 37 milímetros / 14,5 gramas | 20 |
40 réis | 1823-1831 e 1833 | 30 milímetros / 5,7 gramas | 10 |
20 réis | 1825 | 25 milímetros / 3,6 gramas | - |
Valor Nominal | Data | Diâmetro / Peso | Carimbo |
---|---|---|---|
80 réis | 1832 e 1833 | 37 milímetros / 14,5 gramas | 20 |
40 réis | 1832 e 1833 | 30 milímetros / 5,7 gramas | 10 |
Valor Nominal | Data | Diâmetro / Peso | Carimbo |
---|---|---|---|
80 réis | 1826, 1828 a 1831 | 35 milímetros / 14,5 gramas | 20 |
40 réis | 1823-1831 e 1833 | 32 milímetros / 5,7 gramas | 10 |
20 réis | 1825 | 25 milímetros / 3,6 gramas | - |
Valor Nominal | Data | Diâmetro / Peso |
---|---|---|
20 réis | 1825, 1827-1828 e 1830 | 30 milímetros / 7,2 gramas |
Valor Nominal | Data | Diâmetro / Peso |
---|---|---|
20 réis | 1823 e 1824 | 30 milímetros / 3,6 gramas |
Em 8 de maio, o Ministro da Fazenda, Manoel do Nascimento Castro e Silva, apresentou no seu relatório sobre o Ministério, relativo ao ano 34/35 a situação do troco do cobre em todas as províncias. E em especial sobre o Pará consta:
"Nenhuma conta circunstanciada se tem recebido, que demonstre o pezo do cobre recolhido, e apenas consta por algum officio, que o seu valor nominal chega à quantia[20] notada ; não declara se este resultado pertence a toda a Província, se a Capital somente: o seu troco pelo valor nominal, foi approvado por Ordem de 20 de Março de 1832.
Tambem como no Maranhão arbítrios ileagaes forão adoptados: emitirão-se Sedulas de pequenos valores fabricadas na Província, estimou-se a formados pagamentos. Igual desapprovação tiverão estes arbítrios, e se remeterão 320 contos de Sedulas, recomendando, como para o Maranhão, a substituição prompta das Sedulas, que arbitrariamente havião emittido.
Consta, que na desgraçada crise revolucionaria, que actualmente padece a Província, o Presidente intruso (grifo nosso) fez entrar em circulação o cobre em deposto, por hum dado valor."[21]
Do trecho acima transcrito vemos que em maio de 1835 a Corte já tinha notícias da punção e volta à circulação das moedas de cobre recolhidas e da emissão de cédulas de pequeno valor por parte da tesouraria provincial.
Mas, levando-se em conta a demora para a chegada das informações vindas das províncias mais distantes, a confusão no Pará era bem maior. Malcher já se encontrava morto e um segundo presidente cabano estava no poder provincial.
Após assumir o governo da província, Malcher se deparou com reação dos revoltosos que exigiam mudanças e benefícios rápidos. O novo presidente não conseguia esvaziar a capital dos caboclos, negros e índios trazidos com a revolução.
Para tal empregava as forças legais, as quais o viam também com estranheza. Na direção do movimento, as outras figuras relevantes também o desaprovavam. Notadamente os irmãos Vinagre (Antônio e Francisco) e Eduardo Angelim.
O embate do presidente com Francisco Vinagre, Comandante das Armas, se tornou público, culminando com a demissão do segundo. No entanto, como contava com grande apoio popular[22], permaneceu na sua posição após afrontar pessoalmente, e em público, o primeiro presidente cabano.
As disputas internas acabaram por reinflamar a revolução. No dia 21 de fevereiro, após várias escaramuças entre as forças partidárias de Malcher e de Vinagre, o primeiro presidente cabano foi preso e, em seguida, assassinado.
Assumiu Francisco Vinagre, como o segundo presidente cabano. No dia dois de março Francisco Vinagre prestou juramento na Câmara Municipal, comprometendo-se a defender o Império e a província, garantindo as liberdades constitucionais, a lei e a ordem[23].
A fim de manter a Regência informada dos acontecimentos no Grão-Pará, o novo presidente enviou para o Rio de Janeiro, um ofício datado de seis de março, no qual relata as últimas ocorrências, dando ênfase a um grave problema diplomático ocorrido no governo Malcher com o representante consular francês e a sua posse como presidente da província.
A mudança de governo não modificou os problemas cabanos. Também Vinagre encontrou seus cofres vazios para pagamento da tropa e decidiu lançar mão do mesmo artifício de Malcher para pagar o funcionalismo público.
No mesmo dia em que informa a Regência Imperial dos problemas do Pará, também emite um novo bando determinando a remarcação e retorno à circulação de todo o cobre restante ainda na tesouraria provincial. Desta vez trata-se das moedas coloniais de algarismos romanos. Dá início a segunda punção do Carimbo do Pará.
"Havendo por bando publicado em 14 de janeiro do corrente ano entrando em circulação a moeda de cobre denominada Cuiabá, do valor representativo de 40 e 80 rs., nunca sendo menos de 600 a 700 rs. por peso em libra; e urgindo o bem público que a moeda de cobre que se acha inutilizada na Tesouraria da Fazenda, do valor representativo de 80, 40 e 20 rs. não só do cunho do Império como do algarismo romano de 40 e 20 rs., seja de algum proveito à Nação para com ela ocorrer as despesas da província, por aquele valor do cobre amoedado que não prejudique os interesses nacionais: Ordeno o seguinte:
Entra igualmente em circulação a moeda serrilhada; de 80 rs. que será punçada com o valor de 40 rs.; a de 40 rs. com o valor de 20 rs., e a de 20 rs. com o de 10 rs., cujas moedas devem ter libra o peso acima declarado.
A moeda de algarismo romano, do valor representativo de 40 rs. será punçada com o valor de 20 rs., e a de 20 rs. com o valor de 10 rs., cujas moedas também deverão ter por libra o peso referido.
E para que chegue a notícia de todos, ordeno que seja este publicado pelas ruas principais desta Capital e afixado depois na porta principal do Palácio do Governo. Dados aos 6 dias do mês de março de 1835."[24]
Seguindo a orientação deste bando, foram punçadas as contramarcas de 10, 20 e 40 réis nas moedas coloniais de XX, XL e LXXX réis. Percebe-se que seguindo a lógica do peso destas, foram punçados carimbos com a metade do valor fácil e não ¼ como na carimbagem anterior. Foi criado também o cunho de 40 réis, inexistente na punção de Malcher.
Devido a resistência de certos comerciantes em aceitarem a moeda de cobre contramarcada, Vinagre oficia a Câmara Municipal em 11 de junho, nos seguintes termos:
"Constando a este Governo que alguns mercadores não têm querido aceitar a moeda de cobre punçada na Tesouraria desta Província, no valor correspondente ao peso legal, ordeno positivamente a esta Câmara que incontinente faça publicar um edital em que imponha quanto menos a multa de cinquenta mil réis a qualquer nacional ou estrangeiro, que não queira receber tal moeda, além de oito dias de prisão na cadeia pública…"[25]
Após negociações entre o conselho cabano e às forças legais, Francisco Vinagre entregou a presidência da província "voluntariamente" à autoridade designada pela Regência, o Marechal Jorge Rodrigues. O qual tomou posse no dia 26 de junho na Câmara Municipal, como Presidente da Província e Comandante das Armas[26].
O novo governo fora composto por um português (Rodrigues) como Presidente e um mercenário inglês (Almirante Taylor) como Chefe das Armas. Um grupo de mercenários alemães policiava a capital. Tal situação não poderia ser tolerada pelos cabanos e agravou-se com a prisão do próprio Francisco Vinagre[27].
A revolução cabana estourou novamente, liderada por Antônio Vinagre (irmão do 2º presidente cabano) e Eduardo Angelim. Durante a retomada de Belém e expulsão do governo legal Antônio Vinagre foi baleado e morto, sendo Eduardo Angelim aclamado como 3º presidente cabano.[28]
O governo de Angelim foi voltado para uma tentativa de legitimidade do movimento e união do povo contra os desmandos da Corte. No entanto, depois de um prolongado cerco à capital da província, imposto pelo General Andréa, a 13 de maio de 1836 as tropas legalistas desembarcaram na cidade[29].
Os rebeldes foram obrigados a se retirar e organizar a revolução pelo interior. Pelos mais distantes recantos da Amazônia, a Cabanagem, derrotada na capital, subsistiu até o final da década de trinta como movimento de resistência.
Derrotados militar e politicamente, os ideais cabanos permaneceram e trazem suas marcas profundas no homem amazônico, além de ter influenciado o pensamento de todo o nosso país-continente.
Os Carimbos do Pará não inspiram grande atratividade para os colecionadores de moedas, pois são feios e mal feitos, no entanto é o documento material deste período e registram o verdadeiro nascimento da luta de um povo genuinamente brasileiro pela conquista da cidadania.
Encontramos no Arquivo Público do Estado do Pará diversos ofícios da Corte para o governo provincial, nos quais Castro e Silva, Ministro da Fazenda, solicita prestação de contas quanto a operação do troco do cobre, sem, no entanto, efetuar qualquer questionamento sobre as moedas já marcadas.
Pelo contrário, o ofício n° 76, de 14 de outubro de 1835, encaminhou seis coleções de moedas de cobre para fins de escolha de uma contramarca aprovada pela Regência, conforme a, então recém aprovada, Lei n° 54 de 6 de outubro de 1835, a qual institui o Carimbo Geral, a fim de legalizar em nome da Regência a carimbagem que ocorrera no Maranhão, Ceará e Pará.
Novas orientações para a punção do Carimbo Geral são encontradas no ofício n° 8 de 30 de janeiro de 1836, o qual determina que esta punção deveria ser feita no próprio local em que se encontravam, não sendo necessário o recolhimento para a Corte[30], daí a longevidade do Carimbo Cabano, utilizado como Carimbo Geral no Pará.
O fato de os critérios adotados para a aplicação do Carimbo Geral serem semelhantes aos já aplicados pelas cunhagens de Malcher e Vinagre, além de o Carimbo do Pará ser muito semelhante ao Geral, diferenciando-se apenas pela inexistência de orla em relevo no primeiro e deverem ser aplicados na própria província, mostra que nada houve de novidade para o Pará, sugerindo que a contramarca do Pará foi utilizada normalmente naquela província como se fossem da Regência até a sua completa extinção.
Os carimbos do Pará
Carimbo de 10
Observa-se que há dois cunhos comuns, um formado por algarismos arábicos e um segundo, menos frequente, formado por um algarismo romano "I" e outro arábico "0". Certo é que este segundo causa estranheza devido a incoerência de se misturar os dois tipos de algarismos.
Pode-se suspeitar que se trate de uma falsificação barata do cunho, provavelmente de época posterior à Cabanagem. No entanto, ao visitar o Museu do Forte do Presépio, na cidade de Belém (principal foco de confronto das forças legalistas e cabanas), deparei-me com uma sala dedicada ao material recuperado em escavações arqueológicas no referido forte (sala Museu do Encontro), onde, entre outros artefatos cabanos, estavam oito moedas de cobre recuperadas.
Lá encontrava-se o dito "cunho incoerente". Desta maneira creio que não se possa duvidar da genuinidade do mesmo. As referidas moedas encontravam-se em uma vitrine blindada dificultando a fotografia. No entanto, o Sr. Samuel Sóstenes S. Ramos, Diretor do museu, disponibilizou outra para fotografia, esta também fruto de escavação arqueológica realizada na residência dos Capitães-Gerais da Província do Pará (atualmente conhecida como Casa das Onze Janelas), localizada a cerca de 200 metros do Forte do Presépio e também palco dos conflitos cabanos, a qual mostramos mais abaixo.
Carimbos de 20
Apresentamos abaixo alguns cunhos de 20 conhecidos dos numismatas e, ainda, um cunho mais estilizado, como se fosse desenhado a mão.
Uma composição, sem dúvida muito rara, de Carimbo do Pará de "20" aposto em moeda de LXXX réis de 1818 cunhada na Casa da Moeda da Bahia para circular em Goiás e Matogrosso (moeda de 4 oitavas), a qual se encontra em exposição no museu do Forte do Presépio (sala Museu do Encontro), juntamente com outros artefatos cabanos recuperados.
Carimbo de 40
Este cunho é exclusivo da segunda cunhagem cabana, do Presidente Francisco Vinagre, pois, como mencionamos anteriormente, a primeira cunhagem (de Malcher) reduzia o valor a sua quarta parte, portando a maior moeda de cobre (80 réis) passou a valer 20. A segunda cunhagem, por sua vez, reduzia o valor à metade, sendo necessária a criação do cunho de 40 para as moedas de 80 réis.
Moeda com carimbo de "40", pertencente ao acervo do Museu do Forte do Presépio, em Belém (não está em exposição)
Classificação dos carimbos do Pará
Não vejo melhor forma de classificar os Carimbos do Pará senão como procedeu Kurt Prober. Portanto, para manter-me fiel às suas investigações, transcrevo abaixo parte de seu artigo intitulado "Moeda de Necessidade - Carimbo Pará", publicado na Revista Numária, Número 10, da Sociedade Numismática e Filatélica do Ceará, em outubro de 1939:
"…devemos classificar os "CARIMBOS PARÁ" em 2 grupos gerais a saber:
1°) Carimbos aplicados pelo Presidente Malcher
"10" em moedas "C" de 40 réis – de 2 oitavas (7,17 gramas).
"20" em moedas "C" de 80 réis de 4 oitavas (14,34 gramas) e eventualmente os mesmos carimbos em moedas "G" dos mesmos pesos e valores primitivos.2°) Carimbos aplicados pelo Presidente Vinagre
"10" em moedas de X réis (coloniais de 2 oitavas), XX réis modelo menor (João Regente e VI de 2 oitavas) e 20 réis (do Império 2 oitavas) todas pesando 7,17 gramas.
"20" em moedas de XX réis (coloniais de 4 oitavas), XL réis modelo menor (João Regente e VI de 4 oitavas) e 40 réis (do Império 4 oitavas) todas pesando 14,34 gramas.
"40" em moedas de XL réis (coloniais de 1 onça) – muito raros –, LXXX réis (João Regente e VI) de 1 onça – igualmente muito raros –, e em 80 réis do (Império de 1 onça), todas pesando 28,68 gramas.
O carimbo de "20" ainda aparece, embora raramente, em peças de LXXX de Mato Grosso de 1820, de 4 oitavas."[31]
NOTAS
[1] SALLES, 1992, p. 16.
[2] REIS, 1953, p.30.
[3] RAIOL, 1865, pp. 11-13; e DI PAOLO, 1990, pp. 99-101.
[4] DI PAOLO, 1990, p. 107.
[5] RAIOL, 1868, P.47.
[6] Nota: do partido português no Brasil Imperial.
[7] Nota: João Batista Gonçalves Campos, deputado mais votado na província e vice-presidente, fora preso durante o golpe.
[8] Ofício datado de 6 de fevereiro, portanto antes da assunção do novo presidente determinado pela Corte, coronel José Joaquim Machado de Oliveira, que ocorreu em 27 de fevereiro de 1832.
[9] Nota: Resolução tomada pela Corte para conter as falsificações do cobre na Bahia.
[10] Manuscrito n° 8.474, 9 de fevereiro de 1832. Anais BN 1881-1882, Vol. 09, T. I.
[11] CAVALCANTI, 1983, p.417.
[12] BRASIL, 1835, p.29 e obs. 12.
[13] Nota: levante caramuru frustrado, que visava garantir a posse do desembargador José Mariani, déspota já temido no Pará, antes mesmo de sua chegada (HURLEY, 1936a, p.217).
[14] RAIOL, 1970, Vol. 2, p. 413.
[15] É certo que Batista Campos tinha a saúde extremamente fragilizada devido a ferimentos decorrentes das surras que tomara e pelo fato de ter sido degredado da província para local insalubre. No entanto, oficialmente sua morte foi consequência de uma espinha infeccionada.
[16] RAIOL, 1970, vol. 2, pp. 547 e 550.
[17] RAIOL, 1970, Vol. 2, p.556.
[18] PROBER, 1966, p.129.
[19] Dados retirados do Catálogo Vieira, 2007.
[20] 887.897$227
[21] BRASIL, 1835, obs.12.
[22] Nota: Francisco Vinagre fora aclamado Comandante das Armas pelo povo e não escolhido pelo presidente.
[23] DI PAOLO, 1990, p.183.
[24] RAIOL, 1973, Vol.2, p.623.
[25] RAIOL, 1970, Vol. 2, p.718.
[26] HURLEY, 1936a, p.336.
[27] DI PAOLO, 1990, pp.234-238.
[28] DI PAOLO, 1990, P.263.
[29] HURLEY, 1936b, p.15.
[30] Códice n° 1.002, Arquivo Público do Estado do Pará.
[31] O forte do Presépio, também conhecido como Forte do Castello, é a primeira edificação da cidade de Belém. Suas primeiras fundações (em princípio de janeiro de 1616) deveram-se ao conquistador do Pará, Francisco Roso de Caldeira Castello Branco, que partiu em expedição a 25 de dezembro de 1615 do Maranhão, após ter derrotado os franceses naquela localidade. (HURLEY, 1936a. p.17)
[32] NUMÁRIA, Número 10, Fortaleza, 1939. p. 17.
REFERÊNCIAS
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